Justiça – depressa, mas não depressinha!

24/06/2024

Revista Visão
Miguel Figueiredo Rodrigues
Docente de Direito Penal e Processual Penal no Centro de Estudos Judiciários

A não confiabilidade na confissão tem o seu exemplo paradigmático no caso recentemente noticiado de Sandra Hemme, que nos Estados Unidos de América foi condenada a prisão perpétua, pela morte de uma bibliotecária, que confessou em troca de evitar a pena de morte

A celeridade e eficácia é uma das prioridades da justiça. É bem conhecida a frase de Ilustre Advogado Brasileiro Ruy Barbosa de início de séc. XX – “Justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta”, que volta não volta é citada por alguém, sem dar o devido crédito ao seu autor.

A atividade processual, civil e criminal, com multiplicação das respetivas normas substantivas e processuais para responder a complexidades crescentes de sociedade, aparenta ser anacrónica e desadequada à dinâmica da vida de hoje, cuja bitola é o tempo de um clique ou de um “like” num post de uma qualquer rede social.

E por isso mesmo o tempo da justiça está e estará sempre na discursividade inerente a qualquer situação que recaia num decisão judicial ou pré-judicial. Haverá sempre alguém menos satisfeito com o desfecho final, seja a vítima, seja o arguido, sejam os familiares, seja algum causídico mais preocupado em fazer-se chegar a um potencial conjunto de seus futuros clientes.

Ao contrário do que se pensa, os magistrados, os funcionários de justiça, os advogados e os próprios sujeitos processuais não têm em si a “luz da justiça”. Esta faz-se de uma verdade processualmente válida, sujeita a prévio e pós contraditório, bem como discussão de inerentes aspetos jurídicos da causa, igualmente suscetíveis de reapreciação por vários graus.

Mentes mais simples procuram certezas simples. Por isso mesmo, em Portugal e noutros países em que a inquisição esteve implantada, a confissão era a prova rainha e tudo valia para a obter, inclusive tortura. E claro, assim todos dormiam descansados face ao dever cumprido assim que fosse obtida uma pública assunção de culpa.

Nos processos-crime, atualmente a confissão continua a existir e a ser valorada, mormente numa perspetiva de prevenção especial. Porém, em caso algum a confissão pode ser desculpa para no processo respetivo não se realizar todas as diligências essenciais para a descoberta de verdade material, porque simplesmente a confissão de um evento criminoso por alguém que diz que cometeu um crime não é necessariamente verdade. E isso não é justiça!

A não confiabilidade na confissão tem o seu exemplo paradigmático no caso recentemente noticiado de Sandra Hemme, que nos Estados Unidos de América foi condenada a prisão perpétua, pela morte de uma bibliotecária, que confessou em troca de evitar a pena de morte no âmbito do modelo anglo-saxónico de negociação “plea bargain”. A mesma padecia de doença psiquiátrica. E assim esteve em prisão durante 43 anos, até agora, quando o tribunal declarou ter encontrado provas, “provas claras e evidentes” de que tinha sido um terceiro.

E por isso mesmo, o cinema tem refletido e explorado esta temática, nomeadamente com pais que confessam pelos filhos, para que eles possam prosseguir a sua vida ou explorados que confessam para pagar uma dívida.

Para quem é estranho a lides mais judiciárias, existe uma base de dados riquíssima da jurisprudência portuguesa que se encontra em www.dgsi.pt (a par de muitas outras, de que dou como mero exemplos https://jurisprudencia.csm.org.pt/ ou de subscrição como www.datajuris.pt).

Da primeira base de dados que citei, saliento o Acórdão do Tribunal de Relação de Coimbra de 30/10/2013, processo 60/13.4JAGRD.C1, relatora Dra. Cacilda Sena. Aí foi decidido que, por referência a crimes dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa (v.g. homicídios), a utilização de processo célere e simples como o processo sumário viola os artigos 20, nº 4 e 32, nº1 da Constituição da República Portuguesa, por restringir intoleravelmente os direitos de defesa do arguido e o direito a um processo justo, assente na dignidade do procedimento como meio para prosseguir uma justiça material e efetiva.

Provas simples e evidentes, como sejam casos de detenção em flagrante delito ou quase flagrante delito, e/ou em que a prova seja essencialmente documental e possa ser recolhida em prazo curto e/ou assentar a prova em testemunhas presenciais com versão uniforme dos factos é algo que raramente acontece nos casos mais mediáticos que por todos têm sido debatidos.

Para essas provas simples e evidentes, a forma processual a utilizar é necessariamente célere, mormente através da forma de processos sumários, os quais são a causa de os tribunais à segunda-feira de manhã terem um número muito superior de arguidos e julgamentos face aos demais dias da semana, precisamente porque esses arguidos serão julgados por um crime de prova simples que efetuaram nos dias anteriores. Mas mesmo neste processo sumário, é salvaguardado o direito à defesa de pedir o adiamento até ao limite de 20 dias após a detenção, porque se pretende uma justiça célere, mas que não se despiste por excesso de velocidade.

A lentidão ou a rapidez da justiça serão sempre tema de controvérsia. Para além do ruído de algumas discussões, importa analisar as causas e envolver todos os sujeitos processuais para garantir uma tempestiva efetividade dos direitos de cada um de nós como cidadãos.

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