O Ministério Público e a detenção fora de flagrante delito

Revista Visão
Pedro Nunes
Procurador da República, Presidente da Regional de Coimbra do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
A ordem para deter é assim um momento processual que se pretende ponderado e fundamentado, no uso de um assumido meio processual de privação momentânea da liberdade, cuja verificação dos limites constitucionais e legais são garantes da sua eficácia, no contributo que esta figura oferece para o sucesso da ação penal e da salvaguarda e proteção dos interesses das vítimas
Numa sociedade abundantemente alertada para o universo da justiça, cuja mediatização alcançou nos últimos meses o seu expoente máximo, a temática subjacente a esta reflexão – a detenção fora de flagrante delito -, remete-nos desde logo para uma trilogia particularmente perscrutada.
Se para uns a conjugação “Ministério Público”, “detenção” e “interrogatório judicial” é tantas vezes sinónimo de notícia, é para outros (as mulheres e os homens que compõem esta magistratura), a partir do retiro dos seus gabinetes, momento introspetivo de ponderação, exigência, proporcionalidade e adequação a respeitar, mesmo que em ambientes comunicacionais hostis, tantas vezes de sentidos aparentemente opostos.
Mas esse momento introspetivo de reflexão quanto à ordem de deter ou não deter, dever ter como essência uma consciência jurídica que no seu exercício pleno e normativo, respeita os valores fundamentais do próximo, cuja liberdade efetivamente exercida importa garantir.
Hoje, como sempre, são os limites de um determinado poder, sobretudo desta natureza, que protegem não só quem é visado pelo mesmo mas também quem o aplica, porquanto só uma versão com rigorosa previsão legal e pedagógica do seu exercício, se apresenta assertiva para as finalidades que visa concretizar e se mostra garantia da respeitabilidade/legitimidade de quem tem a faculdade de o executar.
Na verdade, se há regime, embora hoje mais estabilizado, vulnerável a alterações de alcance na sua afirmação legal, por inoportunos impulsos legislativos com origem em processos mediáticos tantas vezes redutores, porque assentes numa amostra que teima em não ser representativa do efetivo funcionamento do sistema, é precisamente o regime legal da detenção, designadamente o que se refere ao fora de flagrante delito, ora restringindo, ora ampliando o exercício desse poder por quem, conhecedor maior do dinamismo do inquérito, tem a responsabilidade de o colocar em marcha.
A este respeito e sem que a realidade criminal tivesse conhecido, até pelo tempo decorrido, variações de relevo capazes de merecer regimes legais tão díspares, veja-se o contraste entre a opção tomada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, que ao prever no então n.º 1 do art.º 257.º do Código de Processo Penal que “fora de flagrante delito, a detenção só pode ser efetuada, por mandado do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público, quando houver fundadas razões para considerar que o visado se não apresentar espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado”, praticamente limitou a detenção fora de flagrante delito às situações de perigo de fuga e aquela que veio a ser a inversão de sentido protagonizada pela Lei n.º 26/2010, de 30 de agosto, que não só trocou o termo espontaneamente por voluntariamente, como aditou o texto hoje inserto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do referido art.º 257.º do diploma legal citado.
Todavia, entendo que seria um retrocesso ao sistema vigente uma alteração legislativa que consagrasse, novamente, o que a inversão protagonizada pela Lei n.º 26/2010, de 30 de agosto quis salvaguardar.
Ora, conscientes também desta suscetibilidade penderá sobre os diferentes operadores judiciários a responsabilidade de aplicar o regime com a normalidade e humanidade que o exercício das suas funções exige, munindo-se do conhecimento do mapa legal em que se movem, para que no uso das suas virtualidades, possam salvaguardar as finalidades de um processo penal que se quer eficaz e cada vez mais pró-ativo na proteção das vítimas.
Aqui impõe-se particular acuidade quanto às vítimas de crime de violência doméstica que, com a introdução do art.º 30.º, n.º 2 (detenção fora de flagrante delito) da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, se visou adaptar o nosso ordenamento jurídico à Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011.
A ordem para deter é assim um momento processual que se pretende ponderado e fundamentado, no uso de um assumido meio processual de privação momentânea da liberdade, cuja verificação dos limites constitucionais e legais são garantes da sua eficácia, no contributo que esta figura oferece para o sucesso da ação penal e da salvaguarda e proteção dos interesses das vítimas.
PS: Prometo revisitar este tema, não por necessidade de reponderação, mas porque, ao que julgo, a curto prazo será alvo de novo ímpeto legislativo.