O papel do Ministério Público no processo penal
Revista Sábado
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
É de reconhecer que a Justiça portuguesa é morosa e o MP deve sempre refletir sobre a sua atividade, procurando melhorar a sua eficácia e eficiência. Mas, a morosidade não é exclusiva da fase de inquérito.
No dia 7 de novembro, igualmente em Lisboa, decorreu outra importante conferência subordinada ao tema “Funções Soberanas do Estado: transparência e combate à corrupção “, organizada em conjunto pela Associação Sindical de Juízes, Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária, Sindicato dos Funcionários Judiciais, Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e Notariado e Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Foram abordadas, em dois painéis, um primeiro mais académico e um segundo com representantes de diversos grupos parlamentares da Assembleia da República, as temáticas dos crimes que afetam a atividade económica e o seu impacto no desenvolvimento do país, no crescimento económico e no contexto social, bem como aquilo que é necessário para haver mais transparência e erradicar os crimes económicos.
As duas conferências, com excelentes oradores, assumiram uma especial relevância e permitiram um profícuo debate sobre as respetivas temáticas
Irei trazer aqui algumas das conclusões da primeira conferência, relativas ao painel em que se debateu o papel dos magistrados do Ministério Público e a sua relevância no funcionamento do sistema de justiça e, por essa via, no nosso Estado de Direito.
No que diz respeito à morosidade da justiça, é de reconhecer que a Justiça portuguesa é morosa e o Ministério Público deve sempre refletir sobre a sua atividade, procurando melhorar a sua eficácia e eficiência. Mas, a morosidade não é exclusiva da fase de inquérito e nem sempre há atrasos nesta fase (no ranking europeu nem sequer somos dos piores posicionados).
A morosidade tem causas diversas assentes, além do mais, nas alterações legislativas implementadas pelo legislador e nas que omite fazer, na falta de meios ou recursos que o poder político não implementa, na responsabilidade dos magistrados e nos expedientes das partes (pelo frequente uso abusivo dos direitos ou garantias de que dispõem).
No que respeita aos denominados “megaprocessos”, que são os mais demorados, concluiu-se que a lei em vigor é a adequada, porquanto não é possível aprioristicamente determinar, com mais pormenor, quais os casos e circunstâncias em que pode haver conexão ou separação. No futuro, teremos de questionar se o princípio da legalidade deve ser mantido nos termos atuais (hoje o Ministério Público tem de investigar todas as notícias do crime). Por outro lado, não se pense que a dispersão por vários processos é a solução do sistema, porque provoca problemas de eficiência, designadamente, repetição de julgamentos, de atos e de depoimentos.
Sobre a modernização da justiça foram apontadas algumas soluções para introduzir celeridade: evitar repetir a notificação do despacho de acusação com o recebimento da mesma e da marcação do julgamento; permitir a notificação do arguido através de correio eletrónico; reconfigurar a fase de Instrução, reconduzindo-a ao debate instrutório, traduzido numa discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se do decurso do inquérito resultaram indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento; proceder a alterações legislativas que permitam um maior aproveitamento da prova coligida em inquérito – sem necessidade da sua repetição; alterar o efeito do regime de recursos para o Tribunal Constitucional, tornando-o sempre meramente devolutivo e não suspensivo (art.º 78.º, n.ºs 3 e 4 da Lei do Tribunal Constitucional); alterar o regime de alguns dos incidentes processuais, como o do incidente de recusa, consignando que mesmo depois de apresentado o requerimento de recusa, o juiz visado continua a tramitar o processo – sem a atual restrição que o limita a praticar apenas os atos processuais urgentes ou necessários para assegurar a continuidade da audiência).
É necessário melhorar a gestão do processo, seja evitando, sempre que possível, a apensação de processos ou o alargamento do objeto da investigação (aqui recorrendo, se necessário, à extração de certidões para constituição de processo autónomo), seja fazendo uma ponderação acrescida sobre a utilidade/conveniência/imposição legal da separação de processos, em especial aquando da formulação de acusação – tudo sem esquecer que essa ponderação haverá de ser feita caso a caso (não por decreto!) e que nem sempre é possível obstar à formação dos chamados megaprocessos, dada a estreita ou forte conexão entre os crimes ou os agentes neles investigados ou face, até, às necessidades da prova.
A solução para a celeridade processual não pode passar pela consagração legal de prazos perentórios para o inquérito, tal permitiria apenas o arquivamento dos inquéritos sem adequada investigação ou a dedução de acusações não suficientemente sustentadas em termos probatórios, com a consequente maior probabilidade de não pronúncia em fase de instrução ou de absolvição em fase de julgamento. Mais, a fixação de prazos perentórios redundaria também na negação do acesso ao direito e à negação de uma tutela jurisdicional efetiva dos cidadãos e não seria compatível com os princípios decorrentes de um Estado de direito democrático.
Facilmente se compreenderá que, num megaprocesso, a conclusão da investigação nos prazos-regra legalmente previstos (12 meses, se houver arguidos presos, ou 18 meses, não os havendo – art.º 276.º do CPP), é absolutamente impossível. Em especial, num quadro grave de falta de magistrados do Ministério Público e gravíssimo de falta de funcionários a eles afetos. O desrespeito dos prazos fixados na lei não pode ter outros reflexos senão os disciplinares, se as causas do atraso processual forem da exclusiva responsabilidade do magistrado.
Não deve ser alterado o regime dos mandados de detenção, concretamente, a parte em que permite a emissão de mandados de detenção pelo Ministério Público e autoridades de polícia criminal fora do flagrante, sob pena de se paralisar a investigação, de se desproteger as vítimas e, consequentemente, ser posta em causa a segurança pública – vg, roubos e violência doméstica que podem ocorrer a qualquer dia e hora.
Embora tenha ocorrido uma redução do número de prisões preventivas (que só integram cerca de 17% da população prisional) e estamos no grupo dos melhores da Europa nesta matéria, não deixa de ser preocupante, e a exigir reflexão, o facto de cerca de 30/40% dos presos preventivos serem absolvidos. A maioria das absolvições em casos de prisão preventiva verifica-se na violência doméstica e tal deve-se, maioritariamente, ao silêncio das vítimas em julgamento e a alterações no seu depoimento. É, também, no âmbito desta criminalidade que potencialmente podem ocorrer mais detenções infundadas – a avaliação do nível de perigo em que a vítima se encontra é sempre difícil.
Com vista a diminuir o número de presos preventivos absolvidos no âmbito da violência doméstica impunha-se que a renúncia ao direito previsto no artigo 134.º, do Código de Processo Penal (recusa de depoimento de parentes e afins), fosse irretratável, o que permitiria a maior proteção da vítima e dos direitos do arguido e impediria que a prova produzida no inquérito se desmoronasse quando a vítima e familiares se remetem ao silêncio.
Noutra matéria, a alteração da composição do Conselho Superior do Ministério Público não tem vantagens nem para a justiça nem para o Estado de Direito, veja-se o que sucedeu na Polónia, Hungria e Turquia. O Conselho Superior da Magistratura tem uma maioria de não magistrados (embora não na prática), mas possui consagrada a independência individual de cada juiz (ao contrário do Ministério Público). Tendo o Ministério Público uma estrutura hierarquizada, com o controlo externo do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) estariam criadas as condições para o efetivo controlo de todo e cada um dos magistrados (não esquecendo que o CSMP tem o poder de nomeação e transferência de magistrados e o poder disciplinar contra estes).
A lei em vigor concretiza, harmoniza e clarifica os poderes hierárquicos, não sendo necessário alterações legislativas nesta matéria. A dependência e responsabilização direta do Procurador-Geral da República em cada processo é irrealista e infundada, porquanto a tramitação de mais de 700 000 inquéritos por ano não pode ser imputada a uma única pessoa.
Não deve ser fixado prazo perentório para as escutas telefónicas sob pena de poder soçobrar a investigação, até porque as mesmas devem cessar quando através delas não se obtêm resultados.
Não colide com o princípio da autonomia a intervenção do superior hierárquico na gestão dos processos mais complexos e na organização de equipas de investigação conjunta.
Estas foram algumas das conclusões, obtidas no primeiro painel da conferência “Processo Penal. O papel dos sujeitos processuais e o Estado de Direito”, relativas ao papel do Ministério Público no processo penal.