BOLSA DE ESPECIALISTAS
VISÃO, 04-05-2020 por Adão Carvalho, Secretário-Geral do SMMP
Os juízes de “common law” não têm que se preocupar especialmente com uma imagem de neutralidade: eles foram escolhidos porque é conhecida a sua pertença ideológica, por isso, o que se espera deles é precisamente que ajam de acordo com o que era esperado: o seu posicionamento em face das grandes questões políticas e sociais
Tem sido notícia nos órgãos de comunicação social que juízes e procuradores vão ter códigos de conduta que os obrigará, por exemplo, a entregar uma declaração de rendimentos e património semelhante à que os titulares de cargos públicos têm de fazer.
Tais notícias parecem inculcar a ideia de novidade, ou seja, que até agora os magistrados não estavam sujeitos a princípios e valores em matéria de ética profissional e deontologia, o que claramente não corresponde à verdade.
Os Códigos de Conduta são instrumentos elaborados pelas próprias categorias profissionais e estabelecem um conjunto de princípios e de valores em matéria de ética profissional que devem ser reconhecidos e adotados por uma determinada categoria profissional, constituindo muitas das vezes uma referência para o público, no que respeita aos padrões de conduta dos que exercem tal categoria profissional no seu relacionamento com terceiros.
No caso das magistraturas muitos desses princípios e valores em matéria de ética profissional fazem parte dos estatutos próprios, acarretando a sua violação responsabilidade disciplinar, diversamente do que acontecerá com qualquer código de conduta que venha a ser adotado.
É essa a tradição dos países da “civil law”, onde em regra não existem códigos de conduta ou deontológicos elaborados pelos próprios profissionais, mas sim estatutos em forma de lei que definem os deveres dos magistrados em termos de disciplina e que são, por isso, normas vinculativas cuja violação acarreta responsabilidade disciplinar, diversamente do que acontece nos países da “common law” onde, em regra, são as próprias ordens profissionais (corporações) que se encarregam de regular o exercício das respetivas profissões.
Os juízes de “common law” não têm que se preocupar especialmente com uma imagem de neutralidade: eles foram escolhidos porque é conhecida a sua pertença ideológica, por isso, o que se espera deles é precisamente que ajam de acordo com o que era esperado: o seu posicionamento em face das grandes questões políticas e sociais.
Assim, a título de exemplo, o Estatuto dos Magistrados do Ministério Público contém normas que estabelecem deveres como os de: sigilo e reserva; zelo; isenção e objetividade; e, urbanidade (artigos 102 a 106 do EMP); ou incompatibilidades, como não puderem desempenhar qualquer outra função pública ou privada de natureza profissional; a proibição de exercício de atividades político-partidárias de caráter público (artigos 107 e 108); ou os respetivos impedimentos (artigo 109).
Da mesma forma a obrigação de entrega de uma declaração de rendimentos e património semelhante à que os titulares de cargos públicos têm de fazer, que tem sido apesentada como a grande novidade dos códigos de conduta, é já um dever estabelecido quer pelos estatutos respetivos, quer pela Lei 52/2019, de 31.07, que estabelece o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos.
A violação de todos os referidos deveres acarreta responsabilidade disciplinar.
Por isso, mais do que trazerem novidades em termos de deveres, a verdadeira utilidade dos códigos de conduta elaborados pelas próprias magistraturas será de responderem às angústias quotidianas dos magistrados com problemas e dúvidas de natureza deontológica, alguns sem verdadeiro recorte disciplinar, e que os secos Estatutos lhes não resolvem, como a esfumada fronteira entre vida privada e vida pública, com a consequente dificuldade em saberem se os seus comportamentos pessoais são ou não socialmente adequados; entre o dever de reserva ou de segredo profissional e o direito de liberdade de opinião e expressão de pensamento, “maxime” a candente delicadeza das relações com a comunicação social; entre o dever de diligência e de dedicação exclusiva e o direito de exercerem atividades extrajudiciais, de natureza assistencial, cultural, científica, docente, desportiva, etc.; entre o dever de julgar e as muitas incompatibilidades legais e éticas que perfilam diversos conflitos de interesses; o tipo de relacionamento com os outros “operadores” judiciários ou outros intervenientes processuais, como os advogados, as partes, as testemunhas, os intervenientes acidentais; a utilização para fins diversos da fundamentação das decisões; o exercício de cargos políticos por juízes no ativo e posteriores dificuldades no regresso às funções judiciais, etc..