JUSTIÇA IMPERFEITA
SÁBADO, 27-05-2020 por António Ventinhas
A morte de George Floyd chocou os Estados Unidos da América e o mundo. As imagens da detenção evidenciam a insensibilidade de alguns polícias perante um ser humano que se encontrava a sufocar. A actuação da polícia americana é bem conhecida. Quem for abordado a conduzir e não colocar as mãos no volante ou apresentar um movimento brusco arrisca-se a ser baleado por quem o devia proteger. O clima de guerra nas ruas faz com que os polícias vejam em cada condutor um potencial inimigo que os quer abater. A cultura de violência instalada na sociedade americana leva a actos que são impensáveis para nós na Europa. Michael Moore no seu filme/documentário Bowling for Columbine faz uma análise da sociedade norte-americana e conclui que o problema dos Estados Unidos não está no número elevado de armas de fogo, mas numa cultura do medo em que cada um tem de se proteger a si mesmo e disparar antes que um potencial inimigo o faça. Segundo este, a visão de um mundo ameaçador em que os inimigos espreitam a cada esquina é potenciado pelas indústrias do armamento que assim obtêm avultados lucros. Para demonstrar a sua tese, Moore comparou os Estados Unidos com o Canadá, país onde existe igualmente um número elevado de armas e concluiu que as taxas de violência são muito diferentes, pois o modo de ver a realidade é substancialmente diversa.
A cultura americana tem implícita uma luta constante pela sobrevivência, em que o mais forte domina o mais fraco. A competição é estimulada até à exaustão. Quem tem sucesso possui uma mansão, um bom automóvel, um seguro de saúde e um plano de reforma excelente; quem fica desempregado ou tem menos competências para concorrer no mercado de trabalho é excluído. Uma percentagem significativa da comunidade negra americana faz parte do grupo dos excluídos e há razões históricas para isso, apesar do sucesso de pessoas como Barack Obama ou Oprah Winfrey. Para percebermos a marcha dos direitos civis nos Estados Unidos teremos de recuar alguns séculos e analisar a lenta evolução dos direitos da comunidade negra americana.
No seu livro “1493”, Charles Mann explica claramente qual a razão porque os estados do sul da América optaram por uma utilização intensiva de mão-de-obra escrava proveniente de África. Os trabalhadores provenientes da Europa apresentavam uma elevadíssima taxa de mortalidade porquanto não resistiam a doenças como a malária, enquanto os escravos possuíam uma imunidade natural às doenças tropicais existentes no Sul dos Estados Unidos. Os grandes proprietários das plantações dos estados sulistas recusaram-se sempre a abolir a escravatura, o que conduziu à sangrenta guerra civil americana. Com a vitória do Norte, o sistema esclavagista foi abolido, mas as condições sociais de muitos dos anteriores escravos não se alteraram substancialmente. Muitos negros passaram a trabalhar para os seus antigos senhores mediante o fornecimento de comida e alojamento miserável, isto é, condições muito similares às da escravatura. As duras condições de trabalho nos campos de algodão do Sul dos Estados Unidos perduraram até ao Século XX, num regime de escravidão encapotada. O célebre cantor BB King e outros cantores de blues vieram desses meios pobres.
Em 1936, Hitler organizou os jogos olímpicos de Berlim. De acordo com o regime nazi, esse grande evento desportivo serviria para demonstrar ao mundo a superioridade da raça ariana. No entanto, quem brilhou nesses jogos foi um negro americano de nome Jesse Owens, vencedor de quatro medalhas olímpicas no atletismo. Apesar de ser um herói nacional e um dos melhores atletas de todos os tempos foi impedido de entrar em diversos estabelecimentos devido à cor da sua pele. Durante a segunda guerra mundial houve um grande número de afro-americanos que ingressaram no exército americano, mas dormiam em pavilhões distintos dos outros soldados. No século passado existiam restaurantes e hotéis destinados exclusivamente a negros, como é retratado de forma magnífica no excepcional filme Green Book- um guia para a vida, de Peter Farrelly. Apesar do grande desenvolvimento dos Estados Unidos, nesse país, durante grande parte do século XX, vigorou um regime muito próximo ao apartheid da África do Sul.
O primeiro grande passo para a emancipação da comunidade negra americana passou pelo fim do regime de segregação racial existente nas escolas públicas, uma vez que em muitos estados do Sul existia legislação expressa que distinguia os alunos consoante a cor da pele. Uns empresários negros bem-sucedidos financiaram o patrocínio de uma acção judicial que levou a que o Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos declarasse em 1954 a inconstitucionalidade dessas normas.
Na década de 60 do século passado, Malcolm X e Martin Luther King JR, encabeçaram dinâmicos movimentos cívicos que alertaram a comunidade internacional para a discriminação racial existente nos Estados Unidos. A grande concentração que ocorreu em Washington, a atribuição do prémio nobel da paz a Martin Luther King Jr. e o profundo empenho da família Kennedy e do Presidente Lyndon Johnson permitiram alterar radicalmente o panorama jurídico. A Lei dos Direitos Civis de 1964 permitiu que brancos e negros pudessem frequentar os mesmos estabelecimentos. Por sua vez, no ano de 1965, os cidadãos negros americanos obtiveram o direito de voto. Apesar da evolução legislativa, vastos grupos da sociedade americana nunca concordaram com a mesma. As novas Leis deram origem a tumultos em alguns estados, com intervenções radicais por parte do KKK. Ainda hoje, os grupos de extrema direita que defendem a supremacia branca continuam a contar com milhares de membros nas suas fileiras.
Durante o mandato do Presidente Barack Obama houve esperança que a situação social mudasse efectivamente. O discurso elevado e tolerante de Obama fez crer que poderia ocorrer uma mudança de mentalidade nos Estados Unidos, o que não aconteceu. Na actualidade, o Presidente Donald Trump, com o seu discurso discriminatório, tem inflamado as tensões existentes na sociedade americana que é um barril de pólvora prestes a explodir. Por essa razão, não é de estranhar as enormes manifestações em dezenas de cidades que nos fazem remontar à década de 60 do século passado.
Nos acontecimentos relevantes por vezes existe um herói. Destaco pela positiva Terrence Floyd, irmão de George Floyd. Quando muitos começaram a pilhar lojas, incendiar carros e incitar à violência, o mesmo foi capaz de apelar à paz e renunciar ao sentimento básico de querer fazer correr sangue para se vingar. No século passado três pessoas destacaram-se na defesa dos direitos humanos através de meios pacíficos, Nélson Mandela, Gandhi e Martin Luther King Jr. são um exemplo que deve ser admirado por toda a humanidade.