O Sindicalismo Judiciário na Europa e o simbolismo de uma carta

24/06/2025

Revista Sábado
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

O respeito pelos direitos fundamentais, pela democracia e pelas liberdades é o terreno comum que sustenta sociedades justas, solidárias e inclusivas. Foi para construir este terreno comum que os fundadores da Associação de Magistrados Europeus pela Democracia e Liberdades o sonharam e criaram.

Em junho de 1985, um grupo de juízes e procuradores visionários reuniu-se em Estrasburgo e fundou a Associação de Magistrados Europeus pela Democracia e Liberdades (MEDEL), uma associação que tinha entre os seus objetivos “o estabelecimento de um debate comum entre magistrados de diferentes países para apoiar a integração comunitária europeia, tendo em vista a criação de uma união política europeia”, “a defesa da independência do poder judicial face a todos os outros poderes, bem como a interesses específicos”, “a democratização do poder judicial”, “o respeito, em todas as circunstâncias, dos valores jurídicos próprios do Estado democrático de direito” ou “a proclamação e a defesa dos direitos das minorias e das diferenças, e em particular dos direitos dos imigrantes e dos mais desfavorecidos, numa perspetiva de emancipação social dos mais fracos”.

Na altura, estes objetivos eram vistos como princípios quase utópicos. Hoje, porém, a sua importância é ainda maior. Assistimos a uma degradação da democracia e do Estado de direito, a um recuo nos direitos e garantias dos cidadãos e a uma fragilização do direito internacional. Vivemos tempos em que forças autoritárias lançam ataques massivos para travar o avanço de uma democracia genuína e impedir que as pessoas exerçam plenamente os seus direitos fundamentais enquanto cidadãos. O edifício de paz e prosperidade, que julgávamos firmemente consolidado após os horrores da guerra, vê agora os seus alicerces seriamente ameaçados.

Por ocasião do seu 40.º aniversário, no passado dia 3 de junho, no mesmo local do seu nascimento – Estrasburgo, os membros da MEDEL, entre os quais se encontra o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, prestaram homenagem à visão e coragem dos seus fundadores e de todos os juízes e procuradores que seguiram o seu caminho ao longo dos últimos quarenta anos.

Na declaração emitida, sublinha-se que, perante tempos de incerteza e ameaças aos direitos e liberdades fundamentais, a melhor forma de homenagem das 25 associações de 17 países europeus que integram a MEDEL é reafirmar com ainda maior convicção o compromisso assumido há 40 anos nos seus estatutos.

A MEDEL renovou assim o empenho na construção de uma Europa mais coesa, baseada no diálogo entre magistrados e na garantia dos direitos dos cidadãos, independentemente de pressões políticas ou interesses particulares. A defesa da dignidade humana e dos direitos de todos – migrantes, pessoas desfavorecidas, minorias e vítimas de discriminação – é assumida como prioridade, tal como a promoção de uma magistratura democrática, eficiente e verdadeiramente ao serviço da sociedade, sem discriminações de qualquer ordem. Mantém-se, igualmente, a determinação em proteger a independência judicial e o Estado de direito, apoiando sempre os magistrados que vejam a sua autonomia ameaçada.

O respeito pelos direitos fundamentais, pela democracia e pelas liberdades é o terreno comum que sustenta sociedades justas, solidárias e inclusivas. Foi para construir este terreno comum que os fundadores da MEDEL o sonharam e criaram. É este terreno comum que os membros da MEDEL se comprometeram a continuar a construir.

Na mesma ocasião foi prestada homenagem a Murat Arslan, Presidente da Associação de magistrados turcos “Yarsav” e prémio Václav Havel de Direitos Humanos em 2017, que enviou à MEDEL uma carta da prisão na Turquia onde se encontra e que não posso deixar de aqui transcrever:

“Hoje, enquanto a MEDEL celebra o seu 40.º aniversário, como eu gostaria de poder estar na mesma sala convosco, a respirar o mesmo ar, a partilhar a mesma esperança. Mas a minha voz chega-vos a partir de milhares de quilómetros de distância, por detrás das grades de ferro de um país onde se perderam os valores democráticos, onde o poder judicial está ao serviço da política e o Estado de direito foi esquecido.

Há nove anos que estou numa cela de prisão onde só consigo ver o mundo olhando o céu através de um teto retangular. Nove anos, enquanto hoje celebram aqui o 40.º aniversário, é o meu 3149.º dia de prisão… Durante este tempo perdi a minha mãe e o meu pai. A minha esposa tem lutado sozinha para sobreviver há anos. Tenho dois filhos, mas não os posso ver nem falar com eles. Os meus filhos, que eram adolescentes quando fui preso, são agora adultos. A única coisa que sei sobre o seu crescimento é que as folhas do calendário vão desaparecendo lentamente…

No entanto, apesar de toda esta dor, nunca desisti nem alguma vez o considerei. Porque continuo a acreditar na lei, na justiça e em todos vós. A arma mais poderosa de um juiz é uma consciência inabalável. E mantenho a minha viva dentro das vossas.

Durante anos, lutei por um poder judicial independente e imparcial. Defendi a justiça não só nos tribunais, mas também nas ruas, nos palcos, com a minha caneta e com a minha voz. Estive lado a lado com colegas, nunca recuando na linha da frente do Estado de direito.

Aqueles que procuram silenciar a voz da minha consciência estão profundamente enganados. Porque um verdadeiro juiz não pode ser silenciado. A voz da justiça atravessa as grossas paredes de betão das celas, infiltra-se pelas grades de ferro e ecoa nos corações das pessoas de consciência em todo o lado.

A garantia da independência judicial nunca foi um luxo ou um privilégio, ao contrário do que alguns políticos hoje afirmam ao tentarem minar o poder judicial e diminuir a sua dignidade. Essas garantias foram estabelecidas para assegurar a segurança da sociedade, as liberdades individuais e a convivência pacífica de ideias diversas, e para permitir que os juízes exerçam as suas funções com consciência livre. Uma decisão tomada por um juiz ou procurador sob ameaça constante nunca poderá ser uma manifestação de justiça.

Naturalmente, os juízes não estão acima da lei. Ninguém está imune à responsabilidade pelos seus atos. Mas, tal como todos os titulares de cargos constitucionais especiais, os juízes só podem ser julgados através de processos justos e sob o princípio da responsabilidade individual. Caso contrário, num país onde os juízes podem ser presos sem o devido processo legal e constitucional, nenhum cidadão poderá sentir-se juridicamente protegido.

Infelizmente, estes limites há muito que foram ultrapassados na Turquia. Milhares de juízes e procuradores foram demitidos de um dia para o outro sob o pretexto do estado de emergência, sem quaisquer salvaguardas constitucionais ou legais, e posteriormente detidos. Mas isto não é apenas uma questão de números. O que aconteceu nessa noite foi o ato final de uma longa e calculada campanha de assassinato de carácter.

E depois; tal como nos EUA, colegas retirados do tribunal algemados ao contrário, juízes afastados dos seus cargos acompanhados pela polícia como ato de intimidação para todos, fotografias humilhantes deliberadamente distribuídas à imprensa… Estas imagens não servem apenas para humilhar os colegas processados e detidos, mas são símbolos destinados a degradar todo o poder judicial. Onde quer que aconteça no mundo, permanecer em silêncio perante tais práticas que ameaçam a independência judicial e corroem o sentido de justiça pública é ser cúmplice delas. E um dia, esta balança injusta pesará sobre todos.

A existência da MEDEL e de todas as outras associações que defendem a independência judicial é, precisamente neste ponto, uma fonte de esperança para todos nós quanto ao futuro.

Porque a MEDEL não é apenas a organização de uma “profissão” comum; é uma bússola ética inabalável para o poder judicial em nome de todas as profissões e de todos os cidadãos. Aqueles que fundaram a MEDEL não criaram apenas uma associação profissional; ergueram um

“ideal humano” dedicado à defesa do Estado de direito em todo o mundo. Os representantes de hoje continuam a carregar e a alimentar esse ideal. Nos lugares onde a justiça não pode falar, vocês tornam-se a nossa voz. Vocês não mantêm apenas uma associação viva, mantêm viva a consciência partilhada de toda a humanidade.

As práticas que ameaçam a independência judicial e que têm surgido em vários países do mundo nos últimos tempos mostram-nos que o que se passa na Turquia não é apenas um problema para quem lá vive. O que aqui acontece é um teste que todos os países democráticos e todos os profissionais do direito, independentemente das suas convicções, devem observar de perto e do qual devem aprender. Aqueles que hoje permanecem em silêncio perante a injustiça e a erosão do poder judicial, amanhã terão encorajado desastres ainda maiores noutras partes do mundo. Por isso, é urgente e inevitável sensibilizar e formar uma “coligação para a defesa da independência judicial” que inclua todos os setores, das universidades e ordens de advogados às organizações judiciais e instituições internacionais.

Neste ponto, não estamos apenas a falar da erosão da independência judicial, mas do declínio geral dos valores democráticos e do atropelo da dignidade humana. E defender esta dignidade partilhada da humanidade é, acima de tudo, o dever de nós, profissionais do direito.

Vimos e continuamos a testemunhar como o poder judicial foi silenciado sob estados de emergência em diferentes partes do mundo. Isto não é coincidência. Desacreditar e depois neutralizar o poder judicial, cuja função é limitar o poder executivo no quadro da lei, é uma das estratégias mais fundamentais do autoritarismo.

Não apenas na nossa região, mas até nas democracias mais avançadas do mundo, este perigo está a emergir. Nos Estados Unidos, houve momentos em que o presidente emitiu ordens executivas usando poderes extraordinários, levando ao limite o poder executivo, e os tribunais foram pressionados a recuar sob o pretexto da “segurança nacional”. Felizmente, alguns juízes resistem a estas pressões e cumprem os seus deveres. Mesmo tradições democráticas com décadas de existência não estão imunes a esta ameaça. Isto mostra-nos uma verdade clara: se os juízes não defenderem os seus próprios direitos e poderes, ninguém defenderá o poder judicial.

O poder judicial deve manter-se firme mesmo em tempos de crise. Especialmente então. Porque os juízes não se limitam a proferir sentenças, deixam um registo para a história. A vossa caneta não serve apenas para escrever acórdãos, é uma bússola que define o rumo democrático de uma sociedade. Se nos calarmos, a história e o futuro calar-se-ão connosco.

Por isso digo: Quando o poder judicial se cala, prevalecem os poderosos. Mas quando o poder judicial fala, os justos tornam-se poderosos. E queremos um futuro onde os justos sejam poderosos.

Tal como Zola gritou, “Eu acuso!”, hoje digo: vivemos tempos em que o silêncio é o maior crime e eu acuso aqueles que permanecem calados. Mas vocês não estão calados. Por isso, não vos agradeço apenas, vejo-vos nas páginas de honra da história.

Queridos Amigos,

Hoje, estão ao lado daqueles que, ao longo da história, pagaram o preço da justiça e da liberdade. A vossa luta, portanto, não é apenas jurídica, é também histórica e moral.

Albert Camus diz que o homem é um ser revoltado. Daqui, de dentro destas quatro paredes, ergo a cabeça para o céu e apelo a vós e a todos os que me ouvem: Esta revolta é a revolta da esperança, da solidariedade e do direito contra a opressão, a injustiça e a discriminação. Os esforços passados da MEDEL e a consciência transportada por cada indivíduo corajoso que participa neste evento recordam-me, vezes sem conta, esta nobre resistência.

A vossa solidariedade não é apenas apoio a uma pessoa, é um sopro de justiça dado à própria vida. Como colega que não pode estar entre vós hoje, sentir esse sopro a milhares de quilómetros de distância é uma alegria indescritível.

O meu respeito, saudações e gratidão aos fundadores, aos atuais representantes e a todos os amigos que contribuíram para fazer ouvir a minha voz junto dos vossos ilustres convidados…

Espero encontrar-vos em amanhãs livres…

Lembrem-se: a opressão é temporária. O medo é momentâneo. Mas a luz da justiça nascerá mais cedo ou mais tarde. Essa luz ilumina não só os tribunais, mas também as consciências. Porque nós, juízes, não nos limitamos a proferir decisões; também testemunhamos a consciência de uma sociedade”.

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