Os dois juízes portugueses que presidem às duas principais associações europeias de magistrados alertam para as “sombras negras” que ameaçam a democracia e a independência dos magistrados. José Igreja Matos, desembargador no Tribunal da Relação do Porto, lidera a Associação Europeia de Juízes, o que acontece pela primeira vez com um português, enquanto Filipe César Marques é o presidente da MEDEL, uma associação mais recente e que agrupa juízes e procuradores. “Há um efeito dominó na Europa que é preocupante”, avisa este juiz do Tribunal de Trabalho de Barcelos. E se em Portugal há problemas e não se está imune a fenómenos populistas, a situação ainda é de grande conforto perante realidades que se vivem na Europa, sobretudo a leste, na Polónia, Hungria, Roménia ou Bulgária.

“Os grandes problemas estão em crescendo”, salienta Filipe César Marques, 42 anos, “sindicalista desde o início da carreira” já lá vão 17 anos. Por seu turno, numa recente intervenção em Nova Iorque, numa conferência da União Internacional de Magistrados, organização em que é vice-presidente e na qual assumirá a liderança no próximo ano, José Igreja Matos centrou a análise nas muitas “sombras negras” que pairam sobre o judiciário. “Estou muito pessimista. Penso que a democracia está a atravessar uma crise profunda e que está a emergir um totalitarismo, uma visão da sociedade que faz lembrar, e digo isto sem querer ser demasiado sombrio, o período antes da II Guerra Mundial. Com nacionalismos exacerbados, vontade de criar um inimigo, quase sempre externo, e que hoje são o refugiado, o imigrante”, diz o juiz de 53 anos, com três décadas de magistratura.

Filipe César Marques aponta que “o poder judicial tem sido um dos primeiros sinais do terramoto”. Cita o livro “How Democracies Die”, publicado em 2018 por Steven Levitsy e Daniel Ziblatt, em que os autores explicam como, em termos históricos, o poder político subverte o processo democrático para reforçar o seu poder. “O primeiro passo que descrevem é sempre comum: controlar os tribunais com os fiéis a eles. Não é coincidência. O poder judicial depende dos outros dois para executar a sua missão”, lembra. “Não tem a espada nem os impostos”, recorda Igreja Matos, recorrendo a outra citação, esta de Alexander Hamilton, o primeiro secretário do Tesouro dos EUA.

Para estes juízes, não restam dúvidas que há um “caso insolúvel a curto-prazo” – a Turquia presidida por Recip Erdogan é atualmente um estado sem Justiça. “Tem a maior cadeia do mundo para juízes e procuradores”, diz José Igreja Matos, com Filipe César Marques a lembrar que “neste momento há mais de 4000 juízes, procuradores e advogados presos na Turquia”. Murat Arslan, presidente da associação de juízes turcos, foi recentemente condenando a 10 anos de prisão o que tem merecido o mais forte protesto dos magistrados europeus, com a Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP) a assumir a frente de combate. “É um problema civilizacional, mais que político”, diz Igreja Matos, perante “uma purga de uma dimensão nunca vista”.

Mas a nível europeu há várias sombras negras, com os juízes a virarem as suas atenções para os casos de desagregação do poder judicial dentro da União Europeia e do Conselho da Europa. Falamos da Hungria, Polónia, Roménia, Bulgária e Sérvia, países onde os magistrados têm visto ser posta em causa a autonomia e independência. E até a liberdade. “São países com os quais temos relação direta, como em matéria de cooperação de mandados de detenção europeia”, frisa Filipe César Marques.

O efeito dominó na Europa
O juiz realça o papel da ASJP no processo de intervenção da UE na Polónia em que um acórdão de 2018 do Tribunal de Justiça da União Europeia, referente a um recurso da ASJP, teve fundamentação muito importante, dizendo que a organização dos sistemas judiciais nacionais é uma questão de direito comunitário. Logo depois a UE agiu e pediu uma medida cautelar de suspensão da lei do governo polaco. “Foi obrigado a readmitir todos os juízes que tinha reformado compulsivamente. Foi uma grande vitória da ASJP”, realça o presidente da MEDEL, que deixa outros avisos de problemas graves em estados-membros. Na Roménia há “serviços secretos a interferir diretamente no poder judicial” e na Hungria a interferência política até foi pioneira. “Foi o primeiro país a dar esses sinais e agora a UE vê que se calhar devia ter dado mais atenção.”

Qual o efeito no resto da Europa? Os sinais atuais são preocupantes. “A Itália é um dos casos que corre sérios riscos de uma deriva. A agenda ainda não foi posta em prática porque a maioria é instável mas existe”, concretiza Igreja Matos. Por isso, as “eleições europeias serão muito importantes para saber se vamos continuar nesta onda populista ou se vai haver um toque a rebate para uma Europa defensora da democracia e das liberdades”. Nas associações que dirige, a europeia e a mundial como vice-presidente, este juiz realça que há muitas matérias importantes que estão agora mais postas de lado devido a estes problemas. “Gostaríamos muito de dar mais enfoque a áreas que vão marcar a justiça no futuro, como as novas tecnologias, a Inteligência Artificial.”

Em Portugal, com os juízes e os procuradores do Ministério Público a convocarem protestos e greves contra o que dizem ser tentativas de controlo pelo poder político, há perigo? “Aquilo que se adiantou fazer no Ministério Público [impor uma maioria de não magistrados no Conselho Superior] era de facto um ataque à independência. Se para um juiz já é grave que isso aconteça, e infelizmente o nosso CSM tem uma maioria de não juízes, estes não têm hierarquia. É muito grave quando se trata de magistrados que respondem a hierarquia, como no MP”, diz Filipe César Marques.

Falta a confiança da população
O facto de juízes portugueses liderarem as associações europeias é um sinal do crédito a nível internacional. “A nossa magistratura, além de ser de facto independente e ser forte, é muita respeitada internacionalmente. Temos uma associação para todos os juízes (em Espanha são cinco), vista como independente, competente e forte.” José Igreja Matos diz que no norte da Europa há sistemas, em que a “Dinamarca é exemplar” por ter uma coisa que não há cá. “Se houvesse varinha mágica era isso que queríamos: a confiança da população. Os juízes são a classe que os dinamarqueses mais confiam, a seguir aos enfermeiros.”
Filipe César Marques concorda e reforça que o “importante é ter uma sociedade civil forte. Na Alemanha os juízes até estão integrados no Ministério da Justiça mas a sociedade civil é tão forte que ai do governante que tente influenciar um juiz”. Mas, mesmo com casos de contestação a decisões judiciais e à atuação dos juízes, habituais numa sociedade livre, circunscreve os problemas portugueses a uma dimensão diferente do que se vive a leste, apesar de não ficar descansado. “Existe o perigo. Estamos bem mas não podemos dormir descansados.” Igreja Matos aponta que “quando vemos a gravidade dos problemas lá fora, os nossos ficam muito relativizados. Em Portugal existem problemas, há muitos aspetos que podem ser melhorados mas a experiência é de enorme conforto.”

“Tem que haver uma espécie de fortaleza à volta de um ideal. Nós revemo-nos num estado de Direito, com imprensa livre, isto faz parte de uma cultura, de uma mentalidade comum”, diz José Igreja Matos, assumindo que mesmo no setor judiciário nem sempre tudo se conjuga. “Em Portugal perdemos um bocadinho essa noção e trabalhamos num sistema de ilhas. Existimos ao serviço das pessoas, do cidadão e, se tivermos essa perspetiva, tudo o resto é mais fácil.”

Se esta linha comum não for encontrada, as tais “sombras negras” podem pairar. “Se não formos capazes de fazer, mais tarde ou mais cedo, vai aparecer uma alternativa, com alguém a dizer: o judiciário não funciona, não confiamos nos juízes nem nos políticos, como fizeram na Polónia. Este sentido de pertença a uma comunidade democrática é essencial para que as coisas possam funcionar.”

Atacar a corrupção de magistrados
Foi através da ASJP que ambos chegaram às respetivas associações. A AEJ, presidida por Igreja Matos, é um grupo regional dentro da União Internacional de Magistrados (UIM), que agrupa 90 países, sendo “uma espécie de ONU do judiciário e da magistratura” fundada em 1953. Na associação europeia são 43 países representados. O juiz português como primeiro vice-presidente da UIM já sabe que em 2020 assumirá a presidência desta associação mundial em que “nunca houve um português como presidente”.

Já a MEDEL – Magistrados Europeus pela Democracia e as Liberdades nasceu em 1985, quando um “grupo de magistrados de associações que se consideravam mais progressistas e que não estavam satisfeitas com as associações existentes, muito institucionais, mais diplomáticas, decidiram criar uma associação própria”. Filipe César Marques é o terceiro português a liderar o conjunto de 23 associação de 16 países. “Há uma maioria de países de leste. Tem pouco a ver com a da altura da fundação.” Além da ASJP, também o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público é associado.

A MEDEL restringe-se à Europa e no imediato irá dar destaque às eleições para o Parlamento Europeu. “Nós somos apartidários mas não somos apolíticos”, diz Filipe Marques, ao falar do ciclo de conferências que organizaram em março, em quatro cidades europeias, como um “contributo para o debate de questões europeias e do poder judicial. A escolha de locais e temas não foi ocasional. No dia 1, o debate foi em Roma com a imigração como tema. A 8 de maio, Berlim recebeu a conferência sobre populismo e democracia digital. No dia 15 foi em Atenas sobre austeridade e direitos sociais, em que participou Sousa Ribeiro, juiz que foi presidente do Tribunal Constitucional durante o período da troika. A 22, Varsóvia para o tema da independência do poder judicial. “Convidamos candidatos de todos o partidos políticos, da esquerda à direita, para debaterem isto na Europa. Queremos ter um papel a dizer no futuro”, diz o líder da MEDEL.

José Igreja Matos aponta que a UIM, de que será o primeiro presidente português em 2020, tem uma grande aposta para o futuro – a luta contra a corrupção. “Estamos a fazer um esforço enorme. É um dos maiores dramas das democracias e contamina toda a confiança do cidadão. Para a corrupção definimos um plano estratégico em que a luta é a partir de dentro, na própria classe. Há países em que mais de 80% dos juízes são corruptos. Falamos de África, Ásia e América Latina. Se é inadmissível a corrupção em qualquer circunstância, não há pior que um juiz corrupto.”

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