JUSTIÇA IMPERFEITA
SÁBADO, 12-03-2020 por António Ventinhas
Nas últimas semanas, um dos temas centrais da comunicação social passou pela forma como se distribuem os processos nos tribunais.
Qual a importância deste facto?
Um sábio juiz Conselheiro contou-me que uma vez um cidadão lhe disse que não importava a Lei, o que interessa é quem o juiz da causa.
Na verdade, com a mesma lei, as decisões podem variar substancialmente consoante os magistrados que as proferem.
Nos Estados Unidos da América existem programas informáticos que analisam o padrão das decisões de cada juiz, por forma aos escritórios de advogados melhor prepararem a sua estratégia processual.
Há juízes conhecidos por aplicarem penas pesadas, outros ganharam notoriedade pela forma como apreciam a prova ou aplicam as medidas de coacção.
O factor humano na valoração dos factos ou a definição da gravidade das situações é algo que varia de pessoa para pessoa.
As diferenças dos critérios de decisão na primeira instância são esbatidos pela uniformização efectuada pelos tribunais superiores.
A regra é de que os processos na primeira instância e nos tribunais superiores são distribuídos entre os juízes através de sorteio.
A aleatoriedade evita que as partes escolham o juiz que mais lhe convenha, em razão das decisões que o mesmo tenha proferido anteriormente relativamente aquela matéria.
A manipulação da distribuição permite a escolha do juiz, o que favorece uma das partes à partida.
A viciação do sorteio afecta as garantias de imparcialidade do Tribunal e, desta forma, coloca em causa um dos pilares essenciais para a boa administração da Justiça.
Se a adulteração da distribuição visar entregar um determinado processo a um juiz para que este decida de determinada forma, em razão da amizade, parentesco ou recebimento de vantagem, toda a credibilidade do sistema de justiça cai por terra. Quem julga tem de estar equidistante das partes e possuir a objectividade necessária para decidir de forma justa e de acordo com a Lei.
A manipulação das decisões judiciais passa sempre por um processo em que é possível escolher quem decide e a interferência ilegítima na distribuição de processos consegue precisamente isso.
Na fase de investigação criminal, os superiores hierárquicos do Ministério Público definem, em abstracto, quais os grupos de processos que serão distribuídos a cada procurador, em razão da matéria ou dos números de inquérito. Cada procurador conhece os critérios da distribuição e esta é efectuada sem uma apreciação prévia relativamente à investigação a realizar.
Apesar das normas legais permitirem que um processo de inquérito seja retirado ao seu titular originário, ao contrário do que sucede com os magistrados judiciais em virtude de vigorar o princípio do juiz natural, os critérios legais para que tal suceda são muito apertados e poderá existir a necessidade de suscitar a intervenção do Procurador-Geral da República. Ao contrário do que alguns querem fazer crer, os poderes de intervenção hierárquicos estão limitados na Lei e sujeitos a controlo para que se evitem interferências indesejadas nas investigações.
Nos termos do Estatuto do Ministério Público, o Procurador Coordenador de Comarca não pode livremente retirar uma investigação a um procurador e entregá-la a outro sem intervenção do escalão hierárquico superior.
Apesar do foco da imparcialidade da decisão se centrar muito na fase judicial, é bom que os cidadãos estejam atentos ao que se passa na investigação criminal. O Ministério Público é o titular da acção penal, pelo que, em regra, todos os julgamentos de natureza criminal têm origem numa acusação pública. Os processos de decisão na fase de inquérito têm de estar devidamente acautelados, sob pena de muitas causas nunca chegarem a julgamento.