BOLSA DE ESPECIALISTAS
VISÃO, 16-03-2020 por Adão Carvalho, Secretário-Geral do SMMP

Em tempo de pandemia por “coronavírus” decidi fazer uma breve incursão sobre os mecanismos legislativos vigentes em matéria de doenças infectocontagiosas


Para além de várias manifestações a reclamarem a libertação do mediático hacker Rui Pinto foi ainda lançada uma petição pública com o seguinte texto “Alguém que desmascara, alguém que luta pela igualdade e contra a corrupção, não merece ser julgado em tribunal. Merece sim, uma estátua e o apoio de todos os portugueses, inclusive aqueles que também o julgam”.

Os princípios estruturantes da luta contra as doenças infectocontagiosas continuam a decorrer da Lei n.º 2 036, de 9 de agosto de 1949.

Na Base II desta lei centraliza-se na Direcção-Geral da Saúde a responsabilidade pela intervenção do Estado nesta matéria e envolvem-se as autoridades administrativas e policiais nessa luta, impondo-se-lhes a obrigação de darem àquela direção-geral a “colaboração necessária à maior eficiência na luta contra aquelas doenças”.

No contexto das medidas de natureza preventiva estabelecidas naquele diploma destaca-se o disposto na sua Base X, de acordo com a qual, quando fosse participada alguma situação de doença contagiosa, a autoridade sanitária podia “promover a observação do doente e os exames indispensáveis ao diagnóstico definitivo, e estabelecer o regime adequado à defesa da saúde pública tendo em atenção o maior ou menor perigo de contágio”.

Por força do disposto na sua Base IV, era vedado às pessoas a quem fosse diagnosticada uma doença daquela natureza a prática de atos de que pudesse resultar a transmissão da doença, ou mesmo o mero contato com o público.

E neste âmbito, por força do disposto no n.º 2 desta Base, podia ser determinado, “enquanto existir perigo imediato de contágio, que as referidas pessoas não possam frequentar escolas ou estabelecimentos públicos ou particulares, casas de espetáculos ou locais de trabalho, nem utilizar meios de transporte em comum ou ainda exercer profissões que favoreçam a difusão da doença”.

Além disso, nos termos da Base V, os indivíduos afetados eram sujeitos a um regime de vigilância sanitária que podia passar pela sua observação e tratamento em regime ambulatório, ou pelo internamento em estabelecimento hospitalar.

Eram sujeitos ao regime de tratamento em regime ambulatório os doentes “que não oferecendo perigo imediato e grave de contágio, se submetam e possam ficar sujeitos à disciplina e ao tratamento prescritos pela autoridade sanitária”.

Por sua vez, nos termos do n.º 3 da mesma Base, eram “obrigatoriamente internados os doentes e suspeitos que, oferecendo perigo imediato e grave de contágio, não possam ser tratados na sua residência, e ainda os que se recusem a iniciar ou a prosseguir o tratamento ou abster-se da prática de atos de que possa resultar a transmissão da doença”.

Nos termos da alínea d), da Base III, a decisão de internamento era da competência da Direcção-Geral de Saúde, a quem cabia “determinar o internamento, que será obrigatório, dos doentes contagiosos sempre que haja perigo de contágio e não seja possível o tratamento ambulatório ou domiciliário, com as aconselháveis medidas de isolamento e tratamento”.

O Professor Marcelo Caetano caraterizada a medida de internamento como uma medida de polícia administrativa (higiénica) que, no seu entender – para além do mais – compreendia “a vigilância e repressão profilática dos enfermos de moléstias infeciosas, que podem ser obrigatoriamente internados e isolados nos hospitais para prevenir o contágio”.

A Constituição de 1976 levantou questões de compatibilização do regime estabelecido na Lei n.º 2036 com aquele diploma fundamental.

Estabelecendo o artigo 27º da CRP que as restrições ao direito à liberdade, que se traduzem em medidas de privação total ou parcial dela, só podem ser as previstas nos n.ºs 2 e 3 (entre as quais avulta a pena de prisão), não podendo a lei criar outras – princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas (ou restritivas) da liberdade, não se encontra na Constituição como fundamento autónomo da privação do direito à liberdade a necessidade de tratamento de doente infetado com doença infetocontagiosa.

Existe, pois, uma manifesta incompatibilidade das medidas decorrentes daquela lei com o texto fundamental, quer por falta de consagração expressa, quer por falta de fundamento do enquadramento no âmbito das medidas de segurança criminais.

Opção constitucional desfasada da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais que prevê expressamente no seu artigo 5º, n.º 1, al. e), a privação da liberdade se “se tratar da detenção legal de uma pessoa suscetível de propagar uma doença contagiosa (…)”.

Poderia equacionar-se a possibilidade de resolver o problema dos portadores de doença contagiosa que recusem medidas de afastamento ou internamento com o recurso ao crime previsto no artigo 283º, do Código Penal (propagação de doença contagiosa), com a sujeição do visado a medidas de coação de afastamento ou mesmo reclusão para internamento, porém o tipo legal de crime exige como elemento típico a criação de perigo para a vida, ou perigo grave para a integridade física de outrem e, além disso, exige, como resultado da ação do agente, o contágio de outrem, não sendo suficiente o perigo de contágio, pelo que a imputação do concreto contágio a um agente individualizado pode ser difícil em situações de sujeição a um risco meramente ocasional – presença num local frequentado por pessoas.

A lacuna legislativa existente no nosso sistema não poderá servir de desculpa ao dever que impende sobre todos de respeito por nós e pelos outros, acatando voluntariamente as determinações da Autoridade Nacional de Saúde quer quando ao dever de quarentena, quer mesmo de internamento domiciliário ou hospitalar, a fim de contribuirmos para a menor propagação do vírus e a sobrevivência do maior número de pessoas.

A lacuna verificada deverá ser alvo de tratamento na próxima revisão constitucional.

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