BOLSA DE ESPECIALISTAS
VISÃO, 16-11-2020 por Adão Carvalho, Secretário-Geral do SMMP
Após uma primeira Diretiva de fevereiro de 2020, fortemente criticada no seio do Ministério Público, mas também por vários setores ligados à justiça, foi na última quinta-feira publicitada uma nova Diretiva da PGR que revoga a primeira, mas que no essencial nada muda, pelo que os perigos de instrumentalização e funcionalização dos Magistrados do Ministério Público mantêm-se presentes.
Volvidos que são dez meses desde a primeira Diretiva, entretanto suspensa, sem que no entretanto se tenha propiciado uma discussão aprofundada e serena sobre a matéria, dentro do próprio Ministério Público, urdida em segredo, sem objeto de discussão no Conselho Superior do Ministério Público, é emitida pela Procuradora Geral da República uma nova Diretiva.
Em mais de 40 anos da existência do Ministério Público, nos moldes em que o conhecemos hoje, nunca um anterior PGR se sentiu habilitado em emitir uma diretiva ou circular no sentido de permitir a intromissão dos superiores hierárquicos nos processos concretos, para além dos casos expressamente previstos e regulados na legislação processual penal, mesmo antes do novo Estatuto do Ministério Público, em que não existia norma expressa a mencionar, como acontece atualmente, que a intervenção hierárquica se faz, nos termos previstos no Código de Processo Penal.
O próprio legislador, na recente reforma que efetuou ao Estatuto do Ministério Público, não só não quis tomar posição consonante com a estabelecida no teor da atual diretiva, como tendo a oportunidade de o fazer e seria essa a sede própria para o efeito, não só não o fez, como em sinal diametralmente oposto acrescentou que a intervenção hierárquica se faz nos termos previstos no Código de Processo Penal.
A Procuradora Geral da República pretende através de um instrumento hierárquico não só se substituir ao legislador, fazendo tábua rasa do EMP, como de forma autoritária impor uma interpretação que é só da própria, que não encontra suporte no EMP e que não foi objeto de discussão no próprio seio do Conselho Superior do Ministério Público.
Poucos meses após ter emitido uma diretiva que a própria considerou, errónea ou no mínimo de duvidosa sustentação, a ponto de logo de imediato a ter suspenso, apresenta uma nova diretiva, no mesmo sentido, apenas com algumas nuances, de forma totalmente precipitada e sem a necessária discussão e maturação, até pelos perigos que comporta e que são conhecidos, e que seguramente terão sido determinantes para que nenhum anterior PGR enveredasse por esse caminho.
A questão que se coloca é se esse era o contributo mais premente que os magistrados do MP e a justiça portuguesa precisavam da atual PGR?
O Ministério Público atravessa uma enorme crise de falta de magistrados e de falta de meios para a investigação sem que até ao momento a atual PGR tenha vindo a público exigir esses recursos, sendo essa, sim, uma das grandes prioridades sentidas por todos os magistrados do Ministério Público.
Com a nova diretiva os inquéritos passam a ser regulados por duas leis adjetivas ou processuais, o Código de Processo Penal e a Diretiva da PGR, sendo que esta parece sobrepor-se aquele, com a criação de um chamado “dossiê”, paralelo ao processo, onde o superior hierárquico pode dar ordens num processo concreto, no sentido de determinar ou impedir a realização de diligências, dirigido por um outro magistrado ou equipa de magistrados subordinados, e que pode ser consultado pelos sujeitos ou intervenientes processuais.
Entendemos não se afigurar como admissível no quadro constitucional e legal uma categoria de decisões extra processuais com repercussão no processo tomados à margem e não subordinados às exigências legais dos atos do processo.
O magistrado ou equipa de magistrados titulares do inquérito são quem o conhece melhor e quem delineia desde o início em conjugação com o OPC a linha investigatória, definindo o timing das diligências, tendo em vista o resultado desejado, isto é, determinar se há crime e quem são os responsáveis pelo mesmo.
Nenhum superior hierárquico conhece o processo com a mesma profundidade que o seu titular e está em condições de definir melhor o rumo do mesmo, até pelo número de magistrados e processos que recaem no seu âmbito de supervisão.
Pelo que, em regra, a intervenção num determinado processo concreto será desencadeada por uma provocação exterior, seja ela dos sujeitos processuais, da pressão mediática, ou qualquer outra, podendo pela falta de conhecimento exaustivo do processo e da estratégia investigatória deitar por terra todo o trabalho desenvolvido e frustrar mesmo o sucesso da investigação.
Com a interpretação vertida nesta diretiva, o MP deixa de ser um corpo de magistrados e passa a ser constituído por um corpo de funcionários que cumpre e obedece a ordens da hierarquia, que podem condicionar livremente as investigações em curso, com elevado risco de instrumentalização por parte do poder político, aproximando o modelo português tido ao nível europeu como moderno e menos permeável à influência política, dotado de autonomia e independência próprios de uma verdadeira magistratura, num modelo mais funcionalizado e permeável a interferências externas.
Por outro lado, nos processos com repercussão social, designadamente no domínio da corrupção ao nível do poder político, os sujeitos processuais tirarão proveito do tal “dossiê” paralelo ao processo, para atacarem a investigação e a imparcialidade e independência da mesma.
A nova diretiva cria igualmente um regime de impedimentos do superior hierárquico que não encontra qualquer suporte na lei e que, por esse facto, se deve considerar como inexistente.
A necessidade de uma resposta mais adequada e funcional nos processos mais complexos, designadamente ao nível da criminalidade económico-financeira, não radica na intervenção hierárquica arbitrária do superior hierárquico, mas numa melhor organização e articulação dentro do Ministério Público.
A constituição de equipas de investigação, compostas por magistrados com diferentes valências, a regulamentação das equipas de investigação, a inclusão na equipa do magistrado que estará presente no julgamento logo desde a fase inicial de investigação, representam o caminho certo para uma investigação que se pretende independente, transparente, rigorosa, eficaz e mais capacitada para dar uma resposta adequada a uma criminalidade mais organizada e complexa.
Na criminalidade não tão exigente, compete aos órgãos dirigentes do MP, ao nível das procuradorias regionais e de comarca, estabelecerem mecanismos de articulação e cooperação entre os magistrados que intervêm nas diferentes fases processuais, criando vasos comunicantes de forma a que a resposta do MP seja coerente e consistente ao longo do processo.
A interpretação que a Diretiva faz dos poderes hierárquicos não só viola claramente uma lei de valor reforçado (EMP) e exponencia o risco de fragilização da autonomia do MP como, pelas razões aduzidas, será entorpecedora da busca da verdade material e da realização da justiça no caso concreto.