Os protocandidatos a Procurador(a)-Geral da República

04/06/2024

Revista Sábado
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

A autonomia do MP é um princípio fundamental da organização do nosso sistema judiciário e é assegurada por um estatuto que garante aos seus magistrados liberdade de consciência e de ação, protegendo-os contra a interferência de quaisquer poderes.

Em outubro do corrente ano termina o mandato da atual Procuradora-Geral da República, sabendo-se antecipadamente que não irá continuar (já manifestou a sua indisponibilidade para continuar no cargo).

O mandato do Procurador-Geral da República tem, de acordo com a Constituição da República Portuguesa, a duração de seis anos.

A nomeação é proposta pelo Governo ao Presidente da República, que nomeia.

E, como, por vezes, é bom recordar o passado, relembro aqui a proposta do Governo aquando da nomeação da atual Procuradora-Geral da República:

“Cumprem-se no próximo dia 12 de outubro 6 anos do mandato que a senhora Procuradora-Geral Adjunta Joana Marques Vidal vem exercendo como Procuradora-Geral da República. É pois este o momento adequado para…o Governo apresentar a Vossa Excelência a proposta relativa ao próximo mandato de Procurador-Geral da República, de modo a que o processo decorra em atempada confluência entre o Governo e o Presidente da República, permitindo uma transição tranquila e a continuidade da ação do Ministério Público.

A autonomia do Ministério Público é um princípio fundamental da organização do nosso sistema judiciário e é assegurada, antes do mais, por um estatuto que garante aos seus magistrados liberdade de consciência e de ação, protegendo-os contra a interferência de quaisquer poderes. Decorridos cerca de 40 anos da instituição da autonomia, o Ministério Público é uma magistratura prestigiada, com um corpo de magistrados altamente experientes e capacitados para o exercício das missões que lhe estão confiadas, dotada de um modelo de governação que equilibra eficazmente hierarquia, autonomia interna e uma organização desconcentrada.

O processo de nomeação do Procurador-Geral da República, implicando a intervenção e concordância necessárias entre o Governo e o Presidente da República é expressão do princípio constitucional da separação e interdependência de poderes e deve ser conduzido de molde a reforçar a autonomia do Ministério Público mediante a garantia da plena autonomia do Procurador-Geral da República no exercício das suas funções.

Precisamente por isso, entendemos que a benefício da autonomia do Ministério Público o mandato do Procurador-Geral da República deve ser longo e único. Apenas deste modo pode ser exercido com plena liberdade relativamente a quem propõe, a quem nomeia e a quem possa influenciar a opinião de quem propõe ou nomeie.

Este tem sido aliás o entendimento expresso habitualmente por vários magistrados ou suas estruturas sindicais, na esteira da Comissão Europeia para a Democracia através do Direito, órgão consultivo do Conselho da Europa, que, em recomendação adotada em Dezembro de 2010 sobre a independência do poder judicial, aponta para um mandato longo e único para o cargo de Procurador-Geral da República, como forma de reforçar a autonomia do Ministério Público, evitando o condicionamento externo do exercício do cargo.

Por outro lado, entendemos que é desejável que a personalidade a nomear seja um magistrado do Ministério Público, com estatuto de Procurador-Geral Adjunto e com experiência nas áreas de ação do Ministério Público, em particular a ação penal.

Assim…venho submeter à superior consideração de Vossa Excelência a proposta de nomeação da senhora Procuradora-Geral Adjunta Lucília Gago…para o cargo de Procurador-Geral da República para o sexénio 2018- 2024″.

Não poderia estar mais de acordo com muitas das considerações transcritas, escritas pelo Primeiro Ministro, na ocasião, sobre a autonomia interna, a hierarquia e a magistratura do Ministério Público.

Apetece perguntar o que mudou tanto, para alguns, desde então? Será um ou dois processos.

A esta proposta apresentada seguiu-se o despacho do Ex.º Sr.º Presidente da República que “Considera que a Senhora Dra. Lucília Gago garante, pela sua pertença ao Ministério Público, pela sua carreira e pela sua atual integração na Procuradoria-Geral da República – isto é, no centro da magistratura – a continuidade da linha de salvaguarda do Estado de Direito Democrático, do combate à corrupção e da defesa da Justiça igual para todos, sem condescendências ou favoritismos para com ninguém, tão dedicada e inteligentemente prosseguida pela Senhora Dra. Joana Marques Vidal”.

É importante, quando se avizinha a escolha de novo Procurador-Geral da República,  olhar para o passado, para o que se disse e o que se diz atualmente e deixar algumas reflexões sobre o tema.

Essa reflexão não pode ignorar as protocandidaturas que se perfilam, mediaticamente, de forma mais ou menos explícita, para o cargo de Procurador(a)-Geral da República.

É fácil perceber/intuir aqueles que oferecem os seus préstimos para o cargo de Procurador(a)-Geral da República e as motivações que apresentam.

Alguns insinuam-se junto de quem exerce o poder político, esforçando-se por demonstrar a sua utilidade e características pessoais e profissionais que os fazem, na sua própria ótica, a escolha “ideal” para o cargo, demonstrando a sua motivação para acabar com a suposta “roda livre” de que tanto gostam atualmente de falar.

Insinuam a sua utilidade política para o cargo, maldizendo a autonomia da magistratura do Ministério Público, atacando o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e glorificando manifestos ou manifestando iguais sobressaltos.

Mas, o que Ministério Público precisa é de quem compreenda a sua real natureza como magistratura, a forma como se conjuga no seu Estatuto a autonomia (interna e externa indissociáveis uma da outra) com a hierarquia (que é apenas funcional), operacionalizando cada vez mais o trabalho em equipa indispensável na criminalidade complexa e a integração nesta da própria hierarquia.

O futuro Procurador(a)-Geral da República deverá compreender esta realidade incontornável, perceber as insuficiências do Ministério Público, ser capaz de motivar internamente os magistrados (que tão desmotivados estão com os ataques de que são alvo; com sucessivas acumulações de serviço que não são pagas ou apenas o são tardiamente; e que apresentam um acentuado desgaste profissional, constatado em recente estudo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra) e ter competências de comunicação interna e externa.

Quem não percebe a verdadeira natureza do Ministério Público, o que faz dele uma magistratura elogiada ao nível europeu (apontado como exemplo a seguir na sua conjugação da autonomia e hierarquia), nunca será um bom candidato a Procurador-Geral da República.

Visões redutoras da autonomia do Ministério Público, que funcionalizam os magistrados e descaracterizam uma magistratura de raiz constitucional, são admissíveis no contexto da liberdade de expressão de cada um, mas não traduzem a realidade estatutária e as exigências europeias (Conselho da Europa e Tribunal de Justiça da União Europeia), nem prestam um bom serviço a um sistema de justiça independente.

O mesmo se diga daqueles que elogiam manifestos que apontam como problema de base (mesmo que de forma não explicita mas suficientemente compreensível) a própria autonomia do Ministério Público, não sendo capazes de perceber que o Ministério Público só é uma magistratura porque existe uma autonomia técnica/interna dos magistrados no exercício da sua função, bem como que a hierarquia no Ministério Público é apenas funcional e tem largos poderes de intervenção processual.

Quem não entende a importância histórica do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público na criação do Ministério Público moderno e democrático, uma instituição apartidária com quase 50 anos de história e que representa mais de 90% dos magistrados do Ministério Público, não entende a magistratura do Ministério Público e nunca poderá ser um bom candidato a Procurador(a)-Geral da República.  Muito menos aqueles que elegem o sindicalismo judiciário como um alvo a atingir para os seus fins pessoais, egoísticos ou vaidades.

O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), contra a vontade de alguns, que não escondem ao que vêm nem o seu desprezo pelo sindicalismo judiciário, continuará a intervir no espaço mediático quando achar necessário, apresentando propostas para melhoria do Ministério Público e do serviço de justiça, como aconteceu recentemente com um conjunto de propostas para a prevenção e combate à corrupção.

Umas das preocupações desta direção do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, assumindo a sua responsabilidade na dignificação do sistema de justiça, foi a criação de grupos de trabalho, nas diversas áreas de atuação do Ministério Público, que irão apresentar contributos válidos para a melhoria, nessas áreas, da justiça e do funcionamento do Ministério Público.

Não são críticas ao suposto e nunca comprovado poder de influência do SMMP na magistratura que o irão silenciar. Convinha que alguns destes críticos fossem ler os boletins do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) para verificaram como, com grande frequência, são aí tomadas posições contrárias ao que é defendido pelo SMMP. E, já agora, se esse poder de influência é tão grande (???) porque é que o SMMP se vê forçado a regularmente impugnar os movimentos anuais do Ministério Público?

Mas, para quem quer vender uma determinada ideia, não importa analisar factos, muito menos fundamentar ideias propaladas, mas sim transmitir perceções, embrulhadas num conjunto vasto de preconceitos, ignorando, além do mais, que os vogais do CSMP a partir do momento em que são eleitos ou nomeados exercem o seu cargo com completa independência (sim, mesmo aqueles nomeados politicamente devem exercer o seu cargo com completa independência perante quem os nomeou e os seus particulares interesses profissionais, não são mandatários políticos ou pelo menos não o devem ser).

As recomendações do Conselho da Europa nesta matéria são bem claras e é pena serem desconhecidas por tantos que escrevem e se pronunciam no espaço mediático.

A opinião n.º 18 do Conselho Consultivo dos Procuradores Europeus (CCPE) sustenta que “a independência do Ministério Público é um pré-requisito para a independência do Judiciário e para a existência de um Estado de Direito e, como tal, deve ser encorajada e garantida por lei, ao mais alto nível possível, de modo em tudo similar ao que se passa com os juízes”. Os procuradores devem ser autónomos no seu processo de decisão e devem desempenhar as suas funções livres de qualquer pressão externa ou interferência, considerando os princípios de separação de poderes e prestação de contas.

Esta opinião n.º 18, baseada nas melhores práticas europeias, sustenta que os Conselhos Superiores do Ministério Público devem ser corpos plurais, equilibrados na sua composição, com representação de membros não procuradores, incluindo advogados, académicos e membros da sociedade civil, sendo que a maioria deverão ser procuradores de todos os estratos e eleitos pelos seus pares.  Os membros “civis” (não procuradores) não deverão ser políticos “no ativo”, membros do parlamento ou oficiais executivos. Os membros devem ser eleitos de acordo com um procedimento que assegure a sua imparcialidade e independência perante os poderes executivo e legislativo e que garanta um funcionamento sem influências indevidas do interior da hierarquia do Ministério Público.

Além do mais, ao contrário de alguns destes protocandidatos, que legitimamente expressam a sua opinião mas apenas se representam a si próprios ou interesses de terceiros (mais ou menos transparentes), o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público representa um interesse coletivo transparente e legítimo (90% dos magistrados seus associados) e tem nos seus objetivos estatutários a defesa dos seus associados, a dignificação da magistratura do Ministério Público e do sistema de justiça.

Aliás, não deixa de ser curioso, no meio de tanta contestação mediática ao Ministério Público, que a confiança que o Ministério Público merece aos cidadãos seja superior ao da justiça em geral (de acordo com inquérito/sondagem realizado pela RTP).

Não será salutar para o nosso Estado de Direito Democrático legislar a reboque de processos concretos e por impulso de manifestos subscritos por personalidades, sejam elas 50, 100 ou 150 (O SMMP representa também mais de 1.500 magistrados, com legitimidade democrática sindical). As instituições do judiciário, Sindicatos e Ordens Profissionais, não podem ver o seu contributo democrático e a sua legitimidade menosprezados e substituídos por contributos de manifestos que se representam a eles mesmos e os seus particulares interesses.

Acredito que prevaleça o bom senso de não legislar a reboque de processos concretos ou manifestos, percebendo que não se legisla contra as pessoas que todos os dias trabalham no sistema de justiça e em prol de interesses ou ideais particulares, muitas vezes incompatíveis (ao contrário do que afirmam) com o que deve ser o interesse público.

Igualmente acredito que o nome do próximo Procuradora(a)-Geral da República não será condicionado por protocandidaturas mediáticas nem manifestos.

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