JUSTIÇA IMPERFEITA
SÁBADO, 20-05-2020 por António Ventinhas

Ao contrário do que alguns afirmam, os tribunais nunca estiveram parados, mas viram a sua actividade presencial reduzida, como os restantes sectores da nossa sociedade.


Após um período de confinamento, os portugueses começam a sair e a economia a abrir. De acordo com as orientações do Governo e as regras básicas de bom senso, a reabertura tem de conciliar a segurança e a necessidade de desenvolvimento da economia.

Ao contrário do que alguns afirmam, os tribunais nunca estiveram parados, mas viram a sua actividade presencial reduzida, como os restantes sectores da nossa sociedade. Nos últimos dois meses o tempo foi aproveitado para recuperar trabalho atrasado e assegurar o trabalho urgente que é cada vez mais. Em áreas como a violência doméstica, a investigação criminal, a aplicação de medidas de coacção e tomada de declarações para memória futura realizou-se praticamente ao mesmo ritmo do que sucedia anteriormente à pandemia. No âmbito da criminalidade violenta também foram investigados vários homicídios e aplicadas medidas de coacção em diversos processos, alguns até de grande repercussão mediática. O trabalho desenvolveu-se também noutras jurisdições, como por exemplo, nos tribunais de Família e Menores.      

Nas próximas semanas é expectável que se comecem a realizar mais diligências e julgamentos, com a obrigação de se respeitarem as regras da Direcção-Geral de Saúde. O respeito pelas normas sanitárias impede que muitos dos julgamentos se possam realizar nas salas de audiência existentes. Na verdade, há muitos tribunais que funcionam em edifícios de apartamentos ou escritórios, em instalações relativamente reduzidas para se assegurarem as distâncias de segurança, em especial quando o número de intervenientes processuais é elevado. Há cada vez mais julgamentos que envolvem dezenas de arguidos, advogados e testemunhas. Se pensarmos na distância de segurança que é preciso manter entre todos os intervenientes e a obrigação de se evitarem grandes ajuntamentos nos átrios, verificamos que muitos tribunais não possuem condições para a realização destes julgamentos. Com grande probabilidade, os mesmos terão de ser efectuados noutro tipo de instalações, como, por exemplo, auditórios. O estabelecimento de protocolos ao nível local será essencial para colocar a Justiça em marcha. A melhor forma de retomar a actividade passará por realizar as diligências e julgamentos com menor número de intervenientes processuais, pois assim será mais fácil garantir as condições de segurança. Outro problema prende-se com o facto dos gabinetes de inquirição do Ministério Público serem bastante pequenos. Uma solução poderá passar pela cedência das salas de julgamento de menor dimensão para a realização de diligências de inquérito e instrução, pois há instalações que poderão ser demasiado pequenas para realizar julgamentos, mas possuírem condições para outro tipo de diligências. Por último, o pressuposto para a retoma depende da actuação do Ministério da Justiça e deste colocar os meios ao dispor para o efeito, designadamente, fornecer máscaras em número suficiente e reforçar as equipas de higienização, para além da instalação de acrílicos adequados. Só desta forma será possível cumprir as orientações da DGS.

Nas últimas semanas discutiu-se se os advogados e as testemunhas deveriam ser obrigados a levar máscaras para as diligências e julgamentos. Ainda antes desta polémica ter estalado, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público já se tinha pronunciado no sentido de que o Ministério da Justiça deveria fornecer máscaras a todos os intervenientes processuais, pois só com a protecção de todos se garante a saúde pública. No que diz respeito às testemunhas, a questão parece ser ainda mais pacífica. Se o Ministério Público indica alguém para prestar depoimento e o mesmo se encontra obrigado a comparecer sob pena de multa, porque é que deverá suportar o custo com a aquisição de uma máscara? Para além do transtorno que a ida a tribunal acarreta, as testemunhas ainda terão de pagar para o efeito? Será lógico adiar um julgamento, obrigando todos os intervenientes processuais a deslocarem-se novamente a tribunal, pelo facto de alguém se ter esquecido de levar máscara?  

Para finalizar, não podemos ter a ilusão que, de um momento para o outro, o ritmo e o número de julgamentos e diligências nos tribunais será semelhante ao que ocorria antes da pandemia. A realidade mudou em todos os sectores da nossa sociedade, a Justiça não é uma excepção. A pandemia surpreendeu-nos e desafiou o mundo que conhecíamos. Tal situação levou a hesitações, contradições e avanços e recuos na busca das melhores soluções. Há que aprender com o que se passou para melhor preparar o futuro. Tão importante como retomar a actividade é estabelecer um plano de contingência para a segunda vaga do vírus, de modo a que os tribunais continuem a funcionar apesar das adversidades.

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