Quando as chefias podem decidir o salário de um trabalhador

03/07/2025

Jornal Público
Alexandra Chícharo Neves
Procuradora-Geral Adjunta e Vogal da Direcção do SMMP

Nenhum trabalhador, nem sequer os procuradores da República, podem estar submetidos a um regime que permite variações salariais.

Sim, há trabalhadores que mensalmente podem ver a sua remuneração base oscilar ao sabor da vontade das chefias! E não, não é num país do terceiro mundo ou num regime ditatorial, é em Portugal!

Quem são esses trabalhadores? Os procuradores da República da “bolsa” que o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) pretende, potencialmente, constituir, ao abrigo do art.º 107.º, do Regime da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (ROFTJ), para a recuperação de processos atrasados.

Na sequência da lei e da deliberação do CSMP
(https://www.ministeriopublico.pt/sites/default/files/2025-06/movimento2025.pdf) (do passado dia 4 de junho), os magistrados que concorram à “bolsa” ficarão colocados na área geográfica da totalidade da comarca.

Deste modo, por exemplo, quem ficar colocado na “bolsa” da Comarca de Lisboa poderá ser colocado em qualquer dos tribunais e juízos de Lisboa, Almada, Montijo, Barreiro/Moita e Seixal.

A problemática salarial surge quando o CSMP determina que “o estatuto remuneratório de tais lugares irá depender do concreto serviço distribuído ao magistrado” e que “a concreta distribuição de serviço dos referidos lugares caberá aos srs. procuradores-gerais regionais sob proposta dos respetivos magistrados do Ministério Público coordenadores de comarca”.

Ora, o salário dos magistrados é estatutariamente calculado com base na antiguidade e no local onde se exerce funções e está indexado a um índice. Assim, por exemplo, temos um procurador a ganhar pelo índice 175, designadamente, nos juízos locais e pelo índice 220, nomeadamente, nos juízos centrais, trabalho e família e menores – ou seja, quanto mais elevado o índice, mais elevado será o salário.

Logo, voltando ao exemplo acima descrito, os magistrados que concorram à “bolsa” da Comarca de Lisboa poderão ter de exercer funções quer num juízo central (índice 220), quer num juízo local (índice 175).

Ora, em primeiro lugar, o magistrado que concorre em junho só em setembro é que terá conhecimento de em qual desses juízos exercerá funções e, consequentemente, se irá ganhar pelo índice 175 ou pelo índice 220.

Em segundo lugar, quem decide de facto sobre o salário são os coordenadores de comarca (a base da hierarquia) – uma vez que são estes os autores da proposta sobre a distribuição de serviço.

Em terceiro lugar, o que impede uma alteração mensal do “concreto serviço distribuído” e, portanto, do vencimento base? Com efeito, o referido magistrado da Comarca de Lisboa pode, hipoteticamente, estar em janeiro a recuperar eventuais pendências do Tribunal de Trabalho de Almada (índice 220) e, no mês seguinte, estar a recuperar eventuais atrasos no Juízo Local do Cível de Lisboa (índice 175).

Porém, uma oscilação de salários diretamente dependente da hierarquia põe em risco a autonomia do Ministério Público — consagrada constitucionalmente no art.º 219.º, n.º1, da Constituição) — porquanto, o que impede que o salário sirva como meio de pressão para interferências ilegítimas e ilegais?

Mas, para aqueles que são alérgicos à autonomia do MP, há um outro argumento a que, espero, sejam sensíveis: nenhum trabalhador, nem sequer os procuradores da República, podem estar submetidos a um regime que permite, por um lado, variações salariais (mensais, trimestrais ou semestrais) desta magnitude e, por outro, que permita que o próprio vencimento base esteja potencialmente dependente do bom senso ou da boa vontade do chefe.

No caso em análise, o CSMP demitiu-se do seu dever estatutário de gerir os seus quadros, delegando essa competência quase totalmente na hierarquia e consagrando um regime salarial manifestamente ilegal, não só, mas também, porque viola o princípio da segurança e da estabilidade dos vencimentos base.

Como é óbvio, face a esta decisão — e a outros atropelos legais a que a deliberação do CSMP procedeu —, não restava outra solução que não a greve dos magistrados (https://www.publico.pt/2025/06/21/sociedade/noticia/procuradoresavancam-greve-geral-9-10-julho-movimento-magistrados-2137429) do Ministério Público — decretada para os dias 9, 10, 11, 14 e 15 de julho.

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