BOLSA DE ESPECIALISTAS
VISÃO, 29-11-2022
por Adão Carvalho, Presidente do SMMP
A constituição como arguido é uma qualidade que confere direitos e, simultaneamente, uma obrigação para o Ministério Público sempre que uma determinada pessoa seja suspeita numa investigação.
Só com a qualidade de arguido um suspeito passa a ser um sujeito processual com um conjunto de direitos, designadamente aceder ao processo, poder defender-se e apresentar provas.
A constituição como arguido não implica qualquer juízo sobre a existência de indícios da prática de crime pela pessoa em causa, bastando-se com uma suspeita fundada, isto é, que dos elementos existentes na investigação resulte a sua implicação direta ou indireta, a qualquer nível de comparticipação, num crime.
Quando a Assembleia da República aprovou em 2007 a alteração ao Código de Processo Penal quis claramente distinguir suspeita fundada do conceito de indícios exigido para aplicação de medidas de coação, designadamente o de fortes indícios para aplicação da prisão preventiva ou do de indícios suficientes pressuposto da dedução da acusação.
Isto é, o legislador apenas quis afastar as situações em que o Ministério Público, desde logo, pode concluir, com segurança, pela inexistência de crime.
Para melhor compreendermos o conceito de fundada suspeita vou apresentar dois exemplos.
O António, após ter comprado um telemóvel topo de gama numa loja do centro comercial e enquanto faz outras compras, depara que alguém lhe terá furtado o telemóvel. Apresenta queixa na polícia e no decurso da investigação apura-se que o telemóvel está na posse de Gisela. Constituída arguida a Gisela refere que adquiriu o telemóvel num café a um indivíduo que não conhece.
O ato de posse e compra do telemóvel não é, de per si, crime. Mas como é um telemóvel furtado ao António existe suspeita fundada de crime em relação à Gisela, a justificar a sua constituição como arguida, embora a mesma só vá ser acusada se outros elementos de prova permitirem concluir ter sido ela a furtar o telemóvel ou que o adquiriu sabendo ou devendo saber pelo preço pelo qual o adquiriu que era furtado.
Outro exemplo. A mulher do presidente da Câmara Municipal de “Favores de Cima” tem uma empresa imobiliária que pretende construir um prédio em zona de reserva protegida situado na área da Câmara de “Favores de Baixo”. Mesmo sabendo que a construção do prédio não é permitida o presidente da CM de “Favores de Cima” contacta o presidente da “CM de Favores de Baixo” e, após o ter inteirado do interesse da mulher na edificação do prédio no terreno em causa, pede-lhe para autorizar e licenciar a construção, que ambos sabem ilícita, em troca da compensação que este entender.
O presidente da CM de “Favores de Baixo” refere que a condição para a aprovação da obra é que aquele consiga junto do presidente da Câmara de “Cunhas”, seu amigo e colega de partido, que este contrate o seu filho para um lugar no seu gabinete e para o qual não são exigidos especiais requisitos de contratação.
O primeiro contacta o presidente da CM de “Cunhas” e intercede junto deste para que contrate o filho do presidente da CM de “Favores de Baixo”, o que o mesmo aceita e efetua a contratação dentro dos seus poderes para o efeito e de forma legal.
Vejamos: A contratação foi lícita, mas existe suspeita fundada de que o presidente da CM de “Cunhas” comparticipou no crime de corrupção cometido pelos presidentes das CM de “Favores de Cima” e “Favores de Baixo”, porque a contrapartida do crime foi por si assegurada. Já a existência de indícios ou não dessa comparticipação depende de elementos de prova que permitam concluir que o presidente da CM de “Cunhas” conhecia que estava a propiciar a vantagem para o crime de corrupção praticado pelos outros dois e apenas contratou o filho do segundo por esse motivo.
Como resulta claro dos dois exemplos a existência de suspeita fundada não implica que a pessoa vá ser acusada, mas não deixa de ser fundada a suspeita.
De qualquer forma, a latere, deixo uma questão para os nossos políticos: Será que independentemente da conduta do presidente da CM de “Cunhas” ser crime, é este modelo de titular de órgão público que queremos, ou seja, alguém que contrata um funcionário, para o seu gabinete, apenas para fazer o favor a um amigo do partido? A vulgar “cunha”. Será que é este modelo tão tipicamente enraizado que queremos para gerir o erário público e zelar pelo interesse público??
Duas notas ou alertas finais:
– O Conselho Superior do Ministério Público, Órgão que tem a reserva do poder classificativo e disciplinar dos magistrados do MP, tem o dever de constituir uma barreira de proteção e garantir a independência e liberdade dos magistrados que dirigem uma investigação criminal contra qualquer tipo de pressão ou interferência política ou de qualquer outra índole de forma a não inibir e condicionar os mesmos na sua atuação e asseverar que a mesma é independente e apenas regida pelo dever de obediência à lei e a uma objetividade estrita.
– É totalmente inadmissível e contrário aos princípios do Estado de direito que responsáveis políticos desrespeitem a autonomia do Ministério Público e a independência judicial, usando de todos os meios de pressão e intimidação ao seu alcance, designadamente sobre a Procuradora-Geral da República e o Ministério Público, de forma a condicionarem uma investigação criminal em curso.
Termino, como comecei, afinal ser arguido é garantia ou castigo???