Trânsito em julgado nas mãos do arguido

Revista Visão
Rosário Barbosa
Procuradora da República e Presidente da Direcção Regional do Porto do SMMP
Seguramente todos já ouvimos falar do termo “trânsito em julgado” das decisões judiciais, associado à ideia de consolidação e imutabilidade do decidido pelo Tribunal.
É uma matéria complexa, relacionada com a recorribilidade das decisões, com importantíssimas consequências no processo penal, à qual o legislador não atribuiu, em nosso entender, a devida atenção.
Quando é que podemos dizer que uma sentença (decisão de um juiz singular) ou um acórdão (decisão de um tribunal coletivo), proferidos no processo penal, transitam em julgado?
O Código de Processo Penal não fornece uma noção de trânsito em julgado. Aplicamos, portanto, a noção civilista, prevista no artigo 628.º do Código Processo Civil por força do artigo 4.º do Código de Processo Penal: “A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”.
Mas, na prática, quando é que isto acontece?
Em teoria, se uma decisão admitir recurso, transita em julgado decorrido o prazo de recurso (30 dias); se a decisão não admitir recurso, transita em julgado, logo que decorrido o prazo de 10 dias para se arguir nulidades (artigo 379.º do CPP), se requerer a correção da decisão (artigo 380.º do CPP) ou para se interpor recurso para o Tribunal Constitucional (artigo 75.º, n.º 1 da Lei 28/82, de 15/11).
Imaginemos que foi proferido um acórdão pelo Tribunal da Relação que confirmou a decisão condenatória da primeira instância e, portanto, já não admite recurso ordinário, a data do trânsito ocorrerá no prazo de 10 dias. Ou seja, volvidos 10 dias da notificação aos sujeitos processuais, o processo “baixaria” à primeira instância, para execução da pena.
Contudo, não é bem isto que acontece.
É que, pese embora a decisão não admita recurso, o arguido, ainda assim, poderá interpô-lo. E mesmo que o Juiz Desembargador profira despacho de não admissão de recurso, o arguido poderá reclamar.
E enquanto isto acontece, o processo “mantém-se” fisicamente no Tribunal da Relação, não se certifica a data de trânsito em julgado e não há início de execução da pena.
Obviamente que os recursos constituem um corolário da garantia constitucional do direito de defesa e não queremos melindrar tal direito fundamental. Contudo, não raras vezes, surgem apenas como instrumento de retardamento processual, assentes em pretensões manifestamente infundadas.
Convenhamos, o arguido, confrontado com a possibilidade de ir cumprir uma pena de prisão efetiva, terá todo o interesse em interpor todos os recursos que conseguir (mesmo que não sejam admissíveis), tendo somente em vista dilatar no tempo o referido momento do trânsito em julgado, e quiçá, beneficiar de uma prescrição do procedimento criminal.
Não criticamos o arguido!
Criticamos sim o legislador, que não previu ou não quis prever, que o arguido pudesse vir a proliferar no processo incidentes meramente dilatórios e recursos manifestamente improcedentes, com o único propósito de se eximir ao cumprir de pena.
Exemplo disso é o caso dos recursos para o Tribunal Constitucional que têm sido reiteradamente utilizados mesmo quando a pretensão é notoriamente inadmissível e se percebe, claramente, que será indeferido.
Uma justiça célere demanda uma decisão definitiva em prazo razoável e a eliminação de recursos meramente dilatórios terá de ser uma prioridade do legislador penal.
Não podemos continuar a permitir a instrumentalização do direito ao recurso como meio para obstaculizar o trânsito em julgado e o início da execução da pena.
Não podemos deixar nas mãos do arguido a fixação da data de trânsito em julgado, conduzindo-nos a uma inaceitável e incomportável incerteza jurídica.
É imperiosa a formulação de uma norma que obrigue o juiz desembargador a certificar a data de trânsito em julgado dos acórdãos e a determinar a remessa / “baixa” dos processos à primeira instância para que se possa dar início ao cumprimento da pena, atribuindo-se efeitos devolutivos aos recursos manifestamente improcedentes para o Tribunal Constitucional.
Como vimos, a norma do Código de Processo Civil é insuficiente para o processo penal, porque, afinal de contas, ninguém vai preso no processo civil!