Um mergulho na realidade dos magistrados do Ministério Público
Revista Sábado
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
É imperativa uma reflexão séria e urgente sobre a necessidade de salvaguardar a saúde física e mental dos magistrados do Ministério Público.
No passado dia 6 de setembro, no Centro de Estudos Judiciários, foi apresentado o relatório final do estudo realizado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, através do seu Observatório Permanente da Justiça, com o objetivo de avaliar as condições de trabalho, incluindo o desgaste profissional dos magistrados do Ministério Público.
Este estudo traz um conjunto de conclusões e recomendações muito importantes para a prevenção, deteção, acompanhamento e intervenção em situações de risco de stresse profissional e/ou burnout.
Vivemos numa sociedade que muitas vezes se baseia em perceções sobre a realidade, sem a devida preocupação em estudá-la. Este estudo científico, conduzido por especialistas com vasta experiência na área, é essencial para ir além das perceções e mergulhar na realidade dos tribunais e dos serviços do Ministério Público, revelando a “irrealidade” com que os magistrados do Ministério Público se deparam no seu dia a dia.
O bem-estar/saúde dos magistrados, físico e psíquico, é fundamental não só para os próprios, mas também para o funcionamento do sistema de justiça (o serviço que o Ministério Público presta aos cidadãos não pode deixar de ser afetado por um elevado número de magistrados em burnout ou em elevado risco).
As conclusões deste estudo, bem como as de estudos análogos realizados, nacional e internacionalmente, parecem identificar a magistratura do Ministério Público como sendo uma das profissões mais expostas aos riscos profissionais, em particular, aos psicossociais, e, consequentemente, uma das mais vulneráveis aos impactos negativos na saúde e bem-estar.
O volume processual excessivo, o aumento das acumulações de serviço, os níveis elevados de stresse profissional, o ritmo de trabalho elevado para cumprir os prazos, o trabalho frequente durante o tempo livre (em especial aos fins-de-semana), a falta de medidas de apoio à conciliação entre a vida pessoal/familiar e trabalho, bem como a falta de quadros de magistrados e oficiais de justiça afetam, inevitavelmente, não só os magistrados, mas também o serviço prestado aos cidadãos.
A inadequação do número de magistrados do Ministério Público ao volume de serviço existente é claramente evidenciada no estudo, que afirma ser imperioso aumentar o número de vagas no concurso de recrutamento e adequá-lo, nos anos seguintes, à previsão de jubilações e às médias de ausência verificadas nos últimos anos (ao contrário do que alguns gostam de afirmar não é apenas uma questão de gestão dos recursos existentes).
Citando o estudo “a carência de recursos humanos, quer por um preenchimento deficiente do quadro, quer por jubilação, comissões de serviço, ausências e licenças e/ou baixas médicas, traduz-se em acumulações de serviço e tem necessariamente impacto no desempenho profissional: reduz a eficiência e a qualidade dos serviços prestados, torna mais imprevisível as funções a desempenhar e gera sobrecarga de trabalho”.
É impressionante constatar que mais de metade dos magistrados do Ministério Público apresenta risco médio-alto ou elevado de burnout, e que, em média, cerca de 120 magistrados (8,3% dos que estão no exercício de funções) estiveram ausentes do serviço por ano, sendo que quase metade dessas ausências se deveu a baixas médicas.
Estes problemas de saúde levam a uma redução da produtividade, aumento do absentismo e do presentismo, gerando custos para a organização. É evidente a necessidade de uma gestão eficaz dos riscos psicossociais no local de trabalho.
Entre as recomendações que precisam ser implementadas, destacam-se: a adoção de um Plano de Segurança e Saúde no Trabalho, que inclua o acesso a serviços de medicina do trabalho; a criação de um Gabinete de Saúde Ocupacional, com a missão principal de proteger e promover a saúde, prevenir doenças e controlar os riscos profissionais e psicossociais; e a criação de mecanismos de gestão que evitem a sobrecarga de trabalho no regresso após baixas médicas.
Apesar de a medicina do trabalho ser obrigatória para empresas e instituições públicas (Lei n.º 102/2009), a maioria dos magistrados do Ministério Público não tem acesso a consultas de medicina do trabalho, muito menos a apoio psicológico especializado. A falta de autonomia financeira inviabiliza a prestação desse serviço para todos os magistrados do Ministério Público (apenas a Procuradoria-Geral da República dispõe de uma autonomia financeira, embora muito limitada). A Direção-Geral da Administração da Justiça (organismo dependente do Ministério da Justiça) apenas presta esse serviço aos oficiais de justiça, alegando não ser competente para assegurar medicina do trabalho aos magistrados do Ministério Público.
No sistema de justiça, esse problema não afeta os magistrados judiciais e os inspetores da Polícia Judiciária, uma vez que o Conselho Superior de Magistratura e a Polícia Judiciária possuem autonomia financeira, permitindo a criação de gabinetes de apoio psicológico e a garantia de medicina do trabalho.
Esta situação é inadmissível, pois afeta diretamente a saúde e o bem-estar dos magistrados do Ministério Público, compromete o serviço prestado aos cidadãos e gera impacto económico.
Das recomendações do estudo consta ainda “a importância de estender a discussão sobre as condições de trabalho aos profissionais judiciais, em particular à magistratura do Ministério Público, e em manter esta temática como prioridade no debate público e nas agendas estratégicas para o setor da justiça”.
É imperativa uma reflexão séria e urgente sobre a necessidade de salvaguardar a saúde física e mental dos magistrados do Ministério Público. As recomendações deste estudo do Observatório da Justiça devem ser implementadas com urgência, e a falta de autonomia financeira mostra-se um obstáculo intransponível.