SÁBADO, 29-06-2021 por Paulo Lona, Secretário-Geral do SMMP
O executivo ignorou as necessidades do Ministério Público e da investigação criminal no projeto de Estatuto dos Oficiais de Justiça.
Foi recentemente publicado, numa separata do Boletim de Trabalho e Emprego, o projeto legislativo que procede à revisão do Estatuto dos Funcionários de Justiça, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 343/1999, de 26 de agosto, encontrando-se a decorrer a fase da sua apreciação pública.
Ainda recentemente, esperando que não fosse desperdiçada a oportunidade criada com a revisão do estatuto dos Oficiais de Justiça, tinha escrito sobre a necessidade de dotar o Ministério Público de um corpo de funcionários especializados.
A carreira de Oficiais de Justiça nas Secretarias do Ministério Púbico inclui atualmente as categorias de técnico de justiça principal, adjunto e auxiliar, que aí desempenham um conjunto de funções complexas e complementares.
A especificidade das funções exercidas pelo Ministério Público impõe a existência um corpo de funcionários próprio, autónomo, com formação adequada e especialização nas suas diversas áreas de intervenção, com especial enfoque nas áreas de investigação criminal, trabalho, família e crianças, onde há uma forte interação com o público e, por isso, essa necessidade de autonomização e especialização é mais premente. O Ministério Público, como interface entre o Tribunal e os cidadãos, carece de um corpo de funcionários especialmente habilitado e vocacionado para o serviço de atendimento ao público, o qual exige, além do mais, uma especial capacidade de comunicação.
Contudo, analisando o projeto legislativo de estatuto apresentado, verifica-se que não só se não evoluiu nesse sentido como, pelo contrário, se retrocedeu (ignorando as necessidades especificas da Magistratura do Ministério Público e, em especial, da investigação) ao criar uma carreira única, com dois graus – técnico superior de justiça (cujo ingresso exigirá de futuro uma licenciatura em direito) e técnico de justiça (a quem caberá assegurar, de acordo com o preambulo do diploma, as funções de natureza mais executiva) – e sem diferenciação entre funções necessariamente distintas das Secretarias Judiciais e das Secretarias do Ministério Público (que impõem qualificações distintas).
O que se prevê agora é o preenchimento dos lugares de “chefia” de técnico superior de justiça, inclusivamente nas Secretarias do Ministério Público, em regime de comissão de serviço por períodos de 3 anos, renováveis, mediante procedimento concursal e tendo como base de recrutamento os Oficiais de Justiça de qualquer das carreiras.
As funções de técnico superior de justiça (categoria para a qual no âmbito das secretarias do Ministério Público apenas transitam os atuais técnicos de justiça principal – pouco mais de 110 no total nacional) serão, de acordo com o projeto de estatuto, substancial e materialmente alargadas, passando a abranger a prática de atos processuais atualmente da competência dos Magistrados. Competir-lhes-á desempenhar, no âmbito do inquérito crime, as funções de órgãos de policia criminal que lhes sejam cometidas pelo Ministério Público (artigo 6.º, n.1, alínea f) do projeto), tal como a inquirição de testemunhas e interrogatório de arguidos. Ora, quem conhece a realidade das Secretarias do Ministério Público, não pode desconhecer que estas diligências processuais de inquérito são hoje maioritariamente realizadas por técnicos de justiça auxiliares e adjuntos (que transitam para a categoria de técnico de justiça e como tal a quem não caberá continuar a desempenhá-las), que naturalmente são aqueles que se especializaram, pela prática, na sua realização (até pela escassez de técnicos de justiça principal).
Verifica-se que não foi devidamente ponderada a necessidade de qualificação especifica/autónoma daqueles que desempenham funções nas Secretarias do Ministério Público. Estas funções exigem uma qualificação diferente relativamente àqueles que prestam funções nas secretarias judiciais e não uma indiferenciada integração que desqualifica quem tem vindo a desempenhar aquelas funções e desperdiça as competências adquiridas na tramitação processual dos inquéritos.
A qualificação e especialização dos Oficiais de Justiça que desempenham as suas funções nas secretarias do Ministério Público foi arredada do diploma e, porventura mais grave ainda, desperdiçou-se as competências adquiridas pelos técnicos de justiça auxiliares e adjuntos (alguns com grande experiência fruto de anos sucessivos de inquirições e interrogatórios).
A autonomização e qualificação serviriam também para potenciar a atuação da própria Magistratura do Ministério Público.
A conclusão a que se pode chegar é que o diploma do estatuto dos Oficiais de Justiça encontra-se única e exclusivamente moldado para as necessidades das Secretarias Judiciais e para criar uma carreira de “assessores” com os mesmos Oficiais de Justiça já existentes e que já são escassos para as atuais funções.
Não é seguramente assim que se aposta numa investigação criminal de qualidade.
Já se o objetivo é fragilizar o Ministério Público e a investigação criminal estamos no caminho certo.