“Quando se reclama um maior número de magistrados, o objectivo é servir e defender melhor a comunidade e as vítimas e não uma reivindicação corporativa.”
O artigo 152º do Código Penal define qual o âmbito de aplicação do crime de violência doméstica, os factos necessários para o preenchimento do mesmo, bem como as sanções penais aplicáveis.
Para que o crime mencionado seja praticado é necessário que o agente de forma reiterada ou não provoque maus tratos físicos e psicológicos ao cônjuge ou ex-cônjuge; a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; a progenitor de descendente comum em 1º grau; a pessoa particular indefesa em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica que com ele coabite.
O elenco de pessoas sobre quem pode ser praticado este crime encontra-se definido, excluindo-se alguns familiares próximos que não residem com o agressor. Como regra, o crime é punido com pena de 2 a 5 anos de prisão, pois é habitual os factos serem praticados no domicílio comum.
Para além da pena de prisão é possível a aplicação de penas acessórias de proibição de contactos com a vítima, proibição de uso e porte de armas pelo condenado e obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
Há outros crimes previstos no Código Penal que se encontram próximos da violência doméstica. Em determinadas situações uma agressão entre cônjuges poderá ser tipificada como crime de ofensa à integridade física qualificada, uma vez que a lei expressamente o prevê ( artigo 145º, nº2 do Código Penal). O mesmo sucede com o crime de coacção, como resulta claro do artigo 154º, nº 4 do Código Penal.
O insulto entre cônjuges poderá consubstanciar um crime de injúria, mas se for de tal forma intenso ou reiterado que atinja profundamente a vítima, poderá integrar a prática de um crime de violência doméstica. Este critério aplica-se igualmente a outros crimes como a ameaça, coacção ou ofensa à integridade física qualificada. O grau de reiteração ou intensidade extremamente elevada dos crimes já referidos poderá levar à conclusão de que estamos perante maus tratos e por essa razão se verificou um crime de violência doméstica.
A valoração da gravidade da conduta é determinante para aferirmos se estamos perante um crime de violência doméstica ou um crime próximo, o que tem implicações muito relevantes do ponto de vista processual. O regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e assistências das suas vítimas definiu normas específicas para os ofendidos pela prática deste crime.
O estatuto de vítima de violência doméstica atribui uma série de direitos entre os quais destaco o direito à protecção, aconselhamento jurídico gratuito e pagamento de despesas e indemnização no âmbito do processo penal. Os processos destinados a investigar o crime de violência doméstica têm natureza urgente, ou seja, são despachados em primeiro lugar pelos magistrados e correm durante as férias judiciais. Para protecção à vítima foram estabelecidas medidas especificas de protecção e de coacção urgentes.
O legislador definiu que no prazo de 48 horas após a constituição de arguido pela prática de violência doméstica, o tribunal pondera a aplicação de medidas de coacção e que o Ministério Público, logo que tenha conhecimento da queixa, deverá recolher elementos de prova no prazo de 72 horas, com vista à tomada de medidas de protecção da vítima e de coacção ao arguido.
Como é fácil de ver não existem magistrados, funcionários judiciais e polícias que permitam cumprir estes prazos apertados em todos os processos, atento o facto de existirem milhares de processos destinados a investigar a violência doméstica.
Não basta fazer leis, é necessário criar uma estrutura adequada que permita a protecção e acompanhamento das vítimas. O legislador tem de acautelar os meios necessários para a aplicação das leis no terreno, sob pena das mesmas serem mera propaganda política. Uma das críticas que se faz ao sistema judicial é que uma grande parte dos processos não chega a julgamento.
O artigo 281º, nº7 do Código de Processo Penal prevê uma forma simplificada que permite à vítima de violência doméstica suspender a marcha do processo e evitar que o mesmo prossiga para julgamento, apesar de existirem indícios da prática de um crime. Há muitos inquéritos destinados a investigar o crime mencionado que terminam desta forma. O legislador entendeu que certos casos de violência doméstica não devem seguir para julgamento, pelo que não se poderá responsabilizar o Ministério Público quanto a tal facto. No crime de violência doméstica, o depoimento da vítima tem um papel determinante para a formulação de uma acusação e subsequente condenação do arguido.
Numa percentagem relevante de casos, a vítima recorre ao direito legal de poder recusar-se a testemunhar contra o cônjuge ou companheiro. Esta circunstância conduz ao arquivamento de muitos inquéritos e leva a absolvições em fase de julgamento. Por último, há um número significativo de processos de violência doméstica em que é aplicada a pena de prisão, mas esta é suspensa na sua execução, o que tem motivado acesas críticas. Há cerca de 10 anos atrás, sob forte influência do processo Casa Pia, criou-se a convicção de que se prendiam demasiadas pessoas em Portugal. Nessa sequência foram publicadas normas destinadas a fomentar a aplicação da pena de prisão suspensa na sua execução, o que veio a ocorrer.
Se o poder político pretende que se apliquem penas de prisão efectiva a todos os autores de crimes de violência doméstica basta-lhe alterar a lei. Porém, ficará com outros problemas por resolver. Em primeiro lugar, não existe capacidade prisional para uma medida deste género.
Em segundo, uma medida desta natureza implicaria que se aplicasse igual critério aos autores de crime de natureza sexual, roubo ou furto qualificado, o que levaria a um aumento exponencial do número de presos. A grande visibilidade da violência doméstica é extremamente positiva, pois permite reclamar meios financeiros que não existem até agora. O combate à violência doméstica é uma das grandes prioridades do Ministério Público.
Por todo o País existem magistrados especializados que actuam em colaboração estreita com as polícias para erradicar este fenómeno. Infelizmente, atenta a escassez de magistrados e policias, não é possível tratar de forma personalizada e com a celeridade desejável este tipo de processos. Quando se reclama um maior número de magistrados, o objectivo é servir e defender melhor a comunidade e as vítimas e não uma reivindicação corporativa.
13-02-2019 | sabado.pt
Autor: António Ventinhas