SABADO.PT  – 09-05-2018

 

“Como este Governo irá ter um papel muito determinante na escolha do novo PGR já em Outubro, está já a tratar de reforçar os seus poderes previamente no âmbito do Estatuto do Ministério Público.” Nos últimos tempos os processos judiciais que envolvem antigos governantes têm estado no centro do debate.

Para além do plano puramente processual, alguns dos factos publicamente conhecidos têm inevitáveis repercussões no plano político.

A análise da responsabilidade criminal e política rege-se por critérios diversos.

Os factos descobertos em investigações criminais podem influenciar as decisões políticas, mas estas últimas também permitem condicionar as primeiras.

O processo Casa Pia deu origem a uma série de medidas politicas destinadas a alterar aspectos centrais da investigação criminal, como por exemplo, diminuição dos prazos de inquérito, alteração do regime do segredo de justiça, das medidas de coacção e intercepções telefónicas, entre outras, como forma de dificultar a acção do Ministério Público.

É bom salientar que o Primeiro-Ministro da altura que impulsionou a aprovação destas medidas se chama José Sócrates e que no Código de Processo Penal se consagrou uma alteração do regime de intercepções telefónicas muito específico que se aplicava ao próprio.

Neste regime só o Presidente do Supremo Tribunal tem competência para autorizar a intercepção, a gravação e transcrição de conversações ou comunicações em que o Primeiro Ministro fosse interveniente.

Do ponto de vista político é legítimo perguntar se as alterações efectuadas não se destinaram a dificultar a investigação às próprias pessoas que impulsionaram a alteração da legislação.

No entanto, os factos não se ficam por .A indicação e nomeação do Juiz Conselheiro Pinto Monteiro para Procurador-Geral da República também não foi um acto neutro.

Dando um salto para um tempo mais recente, a nomeação da Juíza Conselheira Francisca Van Dunem para Ministra da Justiça foi uma jogada de mestre do actual Primeiro-Ministro.

A nomeação de uma magistrada respeitada, diplomata, inteligente e com capacidade de diálogo permitiu reduzir a crispação no sector e afastar qualquer suspeita de que o Governo quisesse atacar, controlar ou refrear as investigações criminais, por causa dos processos judiciais que envolvem figuras de relevo do Partido Socialista.

No entanto, a realidade é bem diferente.

No projecto de Estatuto do Ministério Público ( EMP) que nos foi presente pretende-se reforçar uma vertente hierárquica que diminui a autonomia interna dos magistrados, ao mesmo tempo que se reforça os poderes do Procurador-Geral da República em detrimento do Conselho Superior do Ministério Público.

Há normas previstas no novo EMP quanto à obediência hierárquica que são mais gravosas do que aquelas que se encontram consagradas no estatuto dos militares da GNR.

Qual a razão porque a Senhora Ministra da Justiça, conselheira do Conselho Superior do Ministério Público durante muitos anos, pretende reforçar os poderes do Procurador-Geral da República em detrimento do órgão a que pertenceu?

A resposta é relativamente simples.

O Conselho Superior do Ministério Público é um órgão democrático e plural em que grande parte dos membros é eleita.

Por sua vez, o Procurador-Geral da República é um órgão unipessoal e resulta de uma escolha politica, cuja iniciativa parte do Governo.

Controlar o Conselho Superior do Ministério Público é mais difícil do que ter influência sobre o Procurador-Geral da República.

Como este Governo irá ter um papel muito determinante na escolha do novo PGR já em Outubro, está já a tratar de reforçar os seus poderes previamente no âmbito do Estatuto do Ministério Público.

Um Procurador-Geral da República com os poderes reforçados pode tornar-se uma ameaça para a investigação criminal se não for escolhida a pessoa certa.

Não é desejável que o Ministério Público volte só a investigar os “pilha-galinhas”.

Por outro lado, o Governo tem boicotado o funcionamento do Ministério Público ao não ter aprovado ainda o respectivo estatuto, articulando o mesmo com a Lei de Organização do Sistema Judiciário.

Os Distritos Judiciais foram extintos na Lei de Organização do Sistema Judiciário, mas as Procuradorias-Gerais Distritais continuam a existir no actual Estatuto do Ministério Público e têm competências por referência ao Distrito Judicial que foi extinto!

A desorganização legislativa é manifesta, como se vê.

Acresce que o futuro da investigação criminal é incerto.

Neste momento, os magistrados mais experientes e com melhor classificação estão a abandonar a investigação criminal, pois os lugares melhor remunerados estão noutras jurisdições.

Um procurador que exerça funções num departamento de investigação e acção penal ( DIAP) aufere substancialmente menos do que aqueles que exercem funções junto de um tribunal de trabalho, da família e menores ou jurisdição administrativa.

Quem queira investir na sua carreira tem de abandonar a investigação criminal.

O Departamento Central de Investigação Criminal ( DCIAP), departamento onde se investigam os principais casos de corrupção, não tem condições aliciantes, o que faz com que praticamente não existam concorrentes para ocupar os lugares.

Não obstante este quadro, o Governo rejeitou todas as propostas do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público que visam valorizar a investigação criminal e manter e captar os melhores magistrados para esta área.

A conclusão a retirar parece simples, o Governo não pretende apostar na investigação criminal e assume fragilizar o Ministério Público e o Estado numa das suas áreas fundamentais.

Se uma equipa de futebol não consegue captar e manter os seus melhores jogadores, sabemos qual será o resultado no futuro e o mesmo não sucede de forma diferente relativamente ao Ministério Público.

Qual a razão porque o Governo pretende menorizar a investigação criminal? Será que pretende afastar os procuradores mais experientes para as investigações ficarem comprometidas?

No que concerne à autonomia financeira, o Ministério Público encontra-se completamente dependente do executivo e terceiros.

A actividade do Ministério Público nos tribunais superiores encontra-se completamente condicionada, situação que já foi denunciada ao Ministério da Justiça, mas este nada fez.

Por último, o Ministério da Justiça pretende através do IGFEJ ( Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça), ficar com competência exclusiva da gestão dos dados do sistema judicial.

Esta gestão, actualmente, é da competência do Conselho Superior da Magistratura, do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, da Procuradoria-Geral da República e do Conselho de Acompanhamento dos Julgados de Paz. Quem controla a informação tem a possibilidade de saber o que se passa em cada investigação criminal e parece-nos evidente que o executivo não possa ter acesso a esse tipo de informação. Tal facto compromete a independência e autonomia de quem investiga, em especial no que diz respeito à criminalidade económico-financeira.

Por outro lado, o ponto único de contacto para a cooperação policial internacional permite o acesso de dados de investigações criminais transfronteiriças. Registamos que este Governo promoveu alterações neste regime, colocando-o sob a égide do Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna (que depende directamente do Primeiro-Ministro) e agora tenta avançar igualmente para o controlo da informação da investigação criminal interna.

A alteração que ora se propõe não se limita à investigação criminal, mas a todos os processos judiciais em curso.

Não sabemos quem ocupará os cargos de Ministro da Justiça, Secretário de Estado da Justiça ou Presidente do IGFEJ no futuro, mas ao efectuar-se esta alteração abrem-se as portas para uma intromissão indesejável do poder politico na esfera judicial.  _______________

por, António Ventinhas

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