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Um processocrime por cada três mortes no trabalho

Um processo- -crime por cada três mortes no trabalho

Para cada três mortes no trabalho há um processo-crime

Entre 2014 e 2017, um total de 159 processos-crime relacionados com acidentes de trabalho chegaram a julgamento. Nesse período, houve 532 acidentes mortais
Ana Dias Cordeiro

No acidente na mina de Fetais em Aljustrel, no qual um trabalhador morreu e um outro ficou gravemente ferido, na segunda-feira, um representante do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Mineira, Luís Cavaco, colocou a hipótese de o desastre ter sido causado por uma “falha de segurança”.

Esse cenário – de uma falha de segurança – nunca deve ser excluído, defende o procurador da República José Paulo Ribeiro de Albuquerque.

Essa será a melhor forma de evitar que eventuais falhas de deveres fiquem impunes, defende.

Em Aljustrel, a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) “dirigiu-se imediatamente ao local e iniciou as diligências para apurar as circunstâncias em que o acidente ocorreu”, confirmou o PÚBLICO junto da entidade sob a tutela do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. As conclusões ainda não são, contudo, conhecidas.

Os acidentes de trabalho por omissão das regras de segurança ou falta dos meios para prevenir desastres enquadram-se num fenómeno que o movimento operário em Itália designa por “homicídio branco”.

“Branco por não estar identificado, directa e claramente, o homicida”, explica o procurador e coordenador do Centro de Estudos Judiciários (CEJ). E continua: “Outros preferem a expressão ‘morte branca'”, em vez de falar de “homicídio”.

Mas o magistrado não concorda, entende que a palavra “morte” suaviza o que diz ser a “gravidade desta espécie de guerra silenciosa” que mata diariamente milhares de pessoas no mundo.

No caso da mina em Aljustrel, um trabalhador de 46 anos morreu e o seu colega de 26 anos ficou gravemente ferido. Os dois seguiam numa carrinha pick-up que caiu num fosso de mais de 30 metros de profundidade. Pode acontecer que não venha a ser comprovada uma falha de segurança. Contudo, o magistrado, que durante vários anos trabalhou em processos-crime deste tipo, defende “a perspectiva sempre cautelosa” de não se afastar a hipótese de uma omissão de deveres, até para a maneira como isso contribui para a investigação.

Em Aljustrel, o sindicalista Luís Cavaco, também ele mineiro na mina de Neves Corvo, relatou, logo no dia do desastre, depoimentos frequentes de trabalhadores sobre “a falta de segurança” num ambiente de trabalho “onde o perigo está sempre à espreita”. “Este é claramente um caso em que não é de excluir de imediato um crime no quadro do [artigo] 277 do Código Penal, de infracção às regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços”, reforça José Ribeiro de Albuquerque, também porque “existe legislação muito específica para as regras de segurança em minas ou pedreiras”.

Inquérito-crime aberto

No caso de Aljustrel, o gabinete de imprensa da Procuradoria-Geral da República confirma “a existência de inquérito[-crime], o qual corre termos no Ministério Público de Ourique”.

De forma geral, para todos os sectores, os acidentes no trabalho graves ou mortais estão enquadrados no Código Penal no artigo 277 e no artigo 152b – crime por “violação das regras de segurança”.

Os dados mais recentes disponibilizados pelo Ministério da Justiça (MJ) para estes dois crimes registam 39 processos em tribunal tanto em 2017 como em 2015, 38 em 2016 e 43 em 2014. O total nestes quatro anos foi de 159 processos em tribunal criminal – o que corresponde a menos de um terço dos 532 acidentes mortais nesses quatro anos. Ou seja: para cada três mortes no trabalho, há um processo-crime por falha na segurança.

Se descontarmos as mortes em viagens de trabalho ou as deslocações de casa para o trabalho e no regresso a casa, e nos centrarmos nas mortes em acidentes ocorridos nas instalações, houve 416 mortes (para os mesmos 159 processoscrime nos tribunais). Isto significa que para cem mortes nas instalações houve apenas 38 casos que chegaram a tribunal.

Estas estatísticas podem significar um elevado número de processos arquivados, por ser “complexo construir uma acusação”, ou porque, nalguns casos, uma morte no local de trabalho pode vir a ser julgada como homicídio por negligência, admite Ribeiro de Albuquerque.

Difícil provar

Os crimes relacionados com omissão de regras de segurança são difíceis de provar, diz também Teresa Peixoto, advogada num escritório especializado na defesa de sinistrados. “É raro haver uma acusação.

Tem de ser um acidente muito grave, com uma omissão das regras de segurança, de alguém que seja responsável pela empresa, e nesse caso tem de preencher determinados requisitos do Código Penal. Não é apenas preencher o requisito dos crimes, mas também da responsabilidade das pessoas colectivas.”

Para a zona de “penumbra”, como diz, contribuem ainda as situações em que o próprio trabalhador se colocou em perigo (embora também aqui deva ser aberto um inquérito-crime, defende, porque além da exposição ao perigo pode haver também uma omissão das regras de segurança).

Ribeiro de Albuquerque aponta outras explicações para que apenas uma em cada três situações de morte seja julgada num tribunal criminal. Por um lado, quando existe a violação das regras de segurança, nem sempre a ACT, ao fazer a participação da contra-ordenação, faz a participação criminal ao Ministério Público (MP). Por outro, nem sempre o MP do Tribunal do Trabalho identifica, num acidente de trabalho, a possibilidade de um crime.

Tanto a ACT como o MP do Tribunal do Trabalho devem fazer essa “avaliação criteriosa”, considera o magistrado, “para que a tutela do bem protegido seja uma preocupação o mais alargada possível”. Por outras palavras, e do “ponto de vista da protecção social”, explica, essa será a forma “de o bem protegido ser não só a vida mas a observância das regras de segurança e a protecção da vida de todos os outros trabalhadores”.

“Muitas vezes, aquilo a que assistimos é uma forma de reacção ao dano, e não tanto [uma acção] de prevenção e de verificação do perigo”, sublinha. “Independentemente de haver dano, já é crime existir perigo para a vida. Há uma realidade constante de perigo que não tem o tratamento correspondente por via penal.”

Um a oito anos de prisão

No caso de haver infracção às regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviço, previsto no artigo 277, que resulte em morte ou ofensa à integridade física grave, a pena prevista de um a oito anos é “agravada em um terço” no seu limite mínimo e no seu limite máximo. A pena é assim mais gravosa do que no caso do homicídio negligente punido com pena de multa ou de prisão até três ou cinco (em caso de “negligência grosseira”).

De acordo com os dados do MJ, dos 159 processos-crime entre 2014 e 2019, com um total de 432 arguidos, 179 foram condenados. “O MP começa por constituir vários arguidos – director da obra, encarregado da obra, e outras funções – porque há suspeitas de que houve omissão de deveres. Como a prova se faz em julgamento, nessa altura reduz-se em muito o número de arguidos”, explica a advogada Teresa Peixoto.

Os visados pela justiça penal têm habitualmente capacidade financeira para prepararem as suas defesas em conceituados escritórios de advogados, refere Ribeiro de Albuquerque. Em paralelo, regra geral, os trabalhadores em acidentes graves ou mortais não têm a correspondente capacidade – as estatísticas da ACT confirmam que os mais atingidos são os menos qualificados e especialmente na construção e nas indústrias transformadoras.

“No âmbito penal, isto pode subir toda a escala hierárquica directamente até ao administrador”, diz Ribeiro de Albuquerque. A eventual falha de deveres pode começar no empreiteiro, pode ser a empresa que dirige a obra, ou outra que esteja em regime de subempreitada, pode ser o director técnico de empreitada, ou o técnico responsável da obra, ou ainda o responsável pela segurança ou também o fiscal da obra – entre outros.

Numa empresa com três administradores – um responsável pela segurança, outro pelos trabalhadores e outro pela parte financeira -, todos ou nenhum deles pode ser responsabilizado, sublinha Ribeiro de Albuquerque. O director pela segurança pode alegar que pediu meios de prevenção de acidentes e o director financeiro defender-se dizendo que não foi informado dos perigos.

“A organização da responsabilidade transforma-se na irresponsabilidade organizada”, conclui.

Aquém das metas para 2020

Para diminuir em 30% o número de acidentes no trabalho até 2020, como o Governo se propôs fazer ao adoptar a Nova Estratégia Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho para vigorar entre 2015 e 2020, esse número não poderia ultrapassar os 389 – entre acidentes graves e mortais em2020.

Em 2018, porém, houve 131 acidentes mortais e 337 acidentes graves – totalizando 468, de acordo com os dados da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). O que significa mais 79 do que o estabelecido como meta para 2020. Contactado, o gabinete do ministro do Trabalho, Vieira da Silva, disse ser importante “frisar que os dados sobre sinistralidade laboral” devem ser lidos “tendo em linha de conta o aumento da actividade económica e em particular o aumento do emprego”. Com efeito, acrescentou, “em períodos de retoma económica e de aumento do emprego, assistese normalmente a um aumento do número de acidentes de trabalho”.

Em 2015, houve 140 acidentes mortais e 417 graves em contexto laboral. Em 2016, o número de acidentes graves baixou substancialmente, mas voltou a aumentar em 2017, para os 382. Em 2018 foram 337, de acordo com os dados da ACT sobre acidentes de trabalho comunicados a esta entidade sob tutela do Ministério do Trabalho.

Relativamente a mortes em acidentes no trabalho, houve uma diminuição em 2016 (passaram de 140 para 138) e em 2017 (quando o número baixou para 119). Em 2018, e segundo a ACT, houve 131 mortes – mais 12 do que no ano anterior. A.C.

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O ponto mais polémico acabou por manter-se no texto que vai a votos, os eurodeputados vão ter a última palavra

Após dois anos de discussões intensas, e depois de um impasse que pôs em risco a votação final, a criação de uma nova directiva de direitos de autor na União Europeia prepara-se para dar os últimos passos.

O texto final para votação foi definido ontem, numa longa reunião à porta fechada. As três entidades responsáveis pelo processo legislativo europeu – o Conselho, o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia – concordaram em manter o Artigo 13, o mais controverso das novas regras.

“Os europeus vão finalmente ter regras modernas de direitos de autor, adequadas à era digital com benefícios reais para todos”, comentou no Twitter o vice-presidente da Comissão Europeia responsável pelo Mercado Único Digital, Andrus Ansip.

O próximo passo é uma votação final no Parlamento, o que ocorrerá até ao final de Abril. O Artigo 13 da proposta, o que une mais vozes contra, mantém-se no texto final.

Foi criado com o objectivo de obrigar as grandes plataformas online (por exemplo, o YouTube) a garantir que conteúdo para o qual não pagam uma licença não estará disponível. Muitos temem que isto implique o recurso a filtros automáticos, apelidados pelos críticos de “mecanismo de censura”, que as plataformas serão obrigadas a usar para barrar o conteúdo para o qual não têm licença.

O Parlamento Europeu nega a possibilidade de censura, como se lê num comunicado desta semana:

“A liberdade na Internet, tal como no mundo real, vai continuar a existir, desde que o exercício não restrinja os direitos dos outros ou seja ilegal.”

Para alguns opositores do artigo, porém, o facto de o objecto daquele artigo não serem os autores justifica a necessidade de o eliminar. “A única opção que faz sentido é eliminar o Artigo 13”, diz ao PÚBLICO Marisa Matias, a eurodeputada do Bloco de Esquerda. É uma das participantes da campanha portuguesa Diz não ao Artigo 13. “O artigo não influencia o resto da directiva sobre os direitos de autor na era digital. Dá é um enorme poder às plataformas que passam a ter mecanismos de filtração legítimos.” Matias diz que com o Artigo 13 incluído na plataforma terá de votar contra a directiva.

A versão aprovada ontem aproxima-se muito do texto votado no final da semana passada. É algo que também preocupa a eurodeputada alemã Julia Reda, que é uma das grandes críticas daquele artigo. “Sites comerciais e aplicações em que os utilizadores publicam material têm de fazer os ‘melhores esforços’ para antecipadamente comprarem licenças para qualquer tipo de material que os utilizadores partilhem”, escreveu Reda.

“É uma tarefa impossível.”

No texto que irá a votação mantém-se a excepção definida na semana passada pelo Conselho da União Europeia, que isenta as plataformas mais pequenas.

Sendo impossíveis mais alterações ao texto, lutar contra o Artigo 13 torna-se sinónimo de lutar contra todo o conteúdo da directiva. Para a eurodeputada alemã Julia Reda: “Ganhar [o debate sobre o Artigo 13] provavelmente significa ter a proposta rejeitada na votação final.”

Mesmo que seja aprovada a directiva, cada Estado-membro terá ainda de decidir como vai aplicar as regras no âmbito das leis nacionais, num processo que pode levar até dois anos.

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