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O sonho de um conde, dinheiro alheio, a falência duvidosa

A história do Zmar

Sociedade, 12/13

O sonho de um conde, dinheiro alheio e uma falência duvidosa Zmar

A história do eco resort da Zambujeira

Mariana Oliveira

O eco resort de Odemira que entrou nas bocas do país por causa da requisição civil a que foi sujeito em finais de Abril tem uma história tortuosa, que esbarra muitas vezes no apelido Espírito Santo. O PÚBLICO desvenda os empréstimos, as dívidas e as licenças que o complexo tem e as que nunca teve

Havia ingredientes suficientes para tornar esta história um conto de fadas do século XXI: um conde com um sonho e um apelido sonante; muitos amigos poderosos a ajudar; um banco de portas abertas e uma herdade com potencial turístico, junto ao Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.

A história podia ter tido um final feliz, mas a realidade teimou em estragar a ficção e a 10 de Março deste ano uma sentença do tribunal de Odemira veio determinar a insolvência da Multiparques a Céu Aberto, a empresa que gere o ZMar. O desenlace aconteceu a pedido do principal credor da sociedade, a Ares Lusitani, uma firma controlada pelo fundo norte-americano Kohlberg Kravis Roberts (KKR), o “papão” desta história.

Não foi, contudo, esse facto que veio pôr o eco resort nas bocas do mundo. Essa proeza é atribuída ao Governo, que a 29 de Abril decretou uma requisição civil sobre as cerca de 260 casas de madeira do empreendimento. A justificação, explicava o despacho assinado pelo primeiroministro, António Costa, e pelo ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, era proteger “a saúde pública na contenção e mitigação da pandemia no município de Odemira e nos municípios limítrofes, mediante a alocação do espaço à realização do confinamento obrigatório e do isolamento profiláctico”.

Na realidade não foi isso que aconteceu. No empreendimento foram realojados migrantes que não estavam infectados, nem tinham tido contacto com o vírus, mas viviam em locais sem condições de salubridade que foram identificados nas múltiplas acções de fiscalização que as autoridades levaram a cabo face ao agravamento da pandemia no maior concelho do país. E, apesar dos protestos de alguns dos donos das casas que integram o ZMar (160 das cerca 260 habitações de madeira são de privados, que possuem apenas o

bungalow, um bem móvel não sujeito a registo), que até interpuseram um procedimento cautelar, a situação manteve-se até final de Maio.

Nessa altura havia 43 migrantes a residir no local, pessoas que ali deverão ficar pelo menos até final de Junho – já não devido à requisição civil, mas com base num acordo assinado esta semana entre a Multiparques e o Turismo de Portugal, que vai render mais de 200 mil euros à empresa.

A terra de Joaquim Montes

Mas recuemos a Maio de 2006, altura em que foi constituída a Multiparques, nessa altura uma sociedade anónima com esse nome e um capital social de 100.001 euros que tinha como objecto “instalação, exploração, gestão, administração e consultadoria de parques de campismo, caravanismo, autocaravanismo e outros locais de alojamento de curta duração”. A empresa estava igualmente habilitada a fazer loteamento e urbanização de terrenos, bem como promoção imobiliária.

O primeiro administrador foi Joaquim Maria Montes, um sargentomor cujo pai fora rendeiro da Herdade A-de-Mateus, onde fica o ZMar. Quando saiu do Exército, Joaquim Montes seguiu as pisadas do pai, como o próprio, hoje com 89 anos, conta ao PÚBLICO.

Mais tarde, acabou por comprar a herdade, onde ainda detém cinco hectares e meio com uma plantação de medronheiros e a casa principal do monte encravada dentro dos 81 hectares do ZMar, uma área equivalente a mais de 75 campos de futebol.

A propriedade é um terreno misto, a maior parte rústico e a outra urbana, mas que atravessa zonas ecologicamente sensíveis, onde a construção é muito limitada.

Joaquim Montes já não se recorda se constituiu a empresa a pedido do “sr. Melo Breyner e da dra. Ana Bruno” com quem negociou a venda. A referência leva-nos ao protagonista desta história. Trata-se de Francisco Manuel Espírito Santo Silva de Melo Breyner, hoje com 69 anos, sétimo conde de Mafra, o homem que idealizou e deu corpo ao eco resort.

“É o fruto de um sonho do Francisco Melo Breyner, em cujo altar sacrificou os seus últimos 15 anos, a sua saúde, e até a casa que herdou dos seus antepassados”, escreveu o seu advogado, da sociedade de Ana Bruno, na infrutífera oposição ao pedido de insolvência.

Bisneto do patriarca da única dinastia de banqueiros portugueses, José Maria do Espírito Santo e Silva – o empreendedor que esteve na origem do que viria a ser o grupo e Banco Espírito Santo (BES) -, Francisco Melo Breyner estava numa situação privilegiada para concretizar o sonho. Tinha acesso ao banco da família, então liderado pelo seu segundo primo Ricardo Salgado. O BES e um grupo de sócios, “amigos”, contou o próprio ao PÚBLICO, em Maio de 2009, umas semanas antes de o complexo se inaugurar, financiaram um investimento que então contabilizava em mais de 25 milhões de euros. Mas as informações recolhidas pelo PÚBLICO no âmbito dos processos de insolvência da Multiparques e também da Cravex, uma sociedade anónima detida por Melo Breyner e a principal accionista da Multiparques, apontam para pelo menos 40 milhões investidos ao longo dos anos.

Só em empréstimos ao BES foram pelo menos 32 milhões de euros, um de 22 milhões em Agosto de 2008, outro de 2,8 em Julho de 2009 e outro feito à mesma instituição, mas através da Cravex. Quando esta última sociedade foi declarada insolvente, em Novembro de 2017, tinha em dívida, já ao Novo Banco, 7,4 milhões. Além disso, houve um empréstimo de três milhões ao Turismo de Portugal e perto de seis milhões pagos pelos fundos do Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN).

A venda

Mas regressemos ao negócio de Joaquim Montes. O octogenário conta que vendeu os 81 hectares por um valor exacto de que não se recorda, mas que situa “entre dois e três milhões de euros”. Em Junho de 2007, dois anos antes da abertura do ZMar, a Multiparques passou a ter como administradora única a advogada Ana Bruno. Joaquim Monte, que também lidou com ela durante as negociações da venda, não sabe a que título intervinha. “Não sei se era só advogada [de Francisco Melo Breyner], se era intermediária ou se era dona”, admite Joaquim Monte.

A questão torna-se mais pertinente vista a partir do que se sabe hoje sobre esta advogada que em 2004 fundara uma sociedade com o seu nome, que hoje apresenta como uma

“boutique jurídica” com “departamentos de acompanhamento” para jurisdições como Angola, Moçambique, Emirados Árabes Unidos e Macau.

O nome de Ana Bruno aparece associado a vários investimentos angolanos em Portugal e de forma particular ao empresário Álvaro Sobrinho, que liderou o BES Angola. A advogada seria sócia de Sobrinho e do empresário luso-angolano Hélder Bataglia, ambos envolvidos em vários processos-crime, na Akoya, uma gestora de fortunas suíça, que surge no meio de um alegado esquema de fraude ao fisco e da qual Ricardo Salgado seria cliente.

Só em Março de 2009, com a fusão da Multiparques e da A Céu Aberto, Campismo e Caravanismo em Parques, Lda, é que surge pela primeira vez o nome de Francisco Melo Breyner na administração da nova Multiparques a Céu Aberto, mostram os registos públicos.

Ana Bruno mantém-se na administração e na teia surge um outro nome com um apelido sonante, Rita Bataglia, filha de Hélder Bataglia, o fundador da Escom que foi acusado de dez crimes na Operação Marquês. O empresário viu o juiz Ivo Rosa arquivar-lhe o caso, uma decisão que ainda poderá ser revista, se o Tribunal da Relação de Lisboa vier dar razão ao recurso do Ministério Público.

O PÚBLICO tentou perceber, sem sucesso, junto de Ana Bruno que interesses representava Rita Bataglia na administração, na qual permaneceu até Março de 2012. Antes já contactara Francisco Melo Breyner, que optou por não prestar declarações, justificando a opção com a visibilidade a que tem estado sujeito o eco resort que fundou e do qual perdeu o controlo em Março passado. Não foi a única perda que o conde contabiliza.

O princípio do pesadelo

O fundo norte-americano KKR e a LX Investment Partners compraram em finais de 2018 ao Novo Banco uma carteira de créditos que este considerava de cobrança difícil. A carteira, que ficou conhecida como Project Nata, envolvia 102 mil contratos [de crédito] com um valor total de 2150 milhões de euros. Entre eles estavam os empréstimos feitos pela Multiparques e pela Cravex, este último com uma hipoteca sobre a Casa dos Bons Ares, um palacete na Quinta do Peru, em Azeitão, onde Francisco Melo Breyner vivia.

Com a insolvência da Cravex a casa passou para as mãos da Ares Lusitani, a mesma empresa que pediu recentemente que o ideólogo do ZMar fosse condenado por insolvência culposa da Multiparques. A tal não serão alheias várias “surpresas” que têm sido desvendadas pelo processo de insolvência. O licenciamento do eco resort é uma delas.

Além de a licença como parque de campismo, a única que possui, ter caducado em Dezembro de 2019, a maior parte das 260 casas de madeira que integram o empreendimento turístico nunca foram legalizadas. Isso mesmo revelou ao PÚBLICO a autarquia, após a insistência do jornal no esclarecimento desta questão.

“O Recape [Relatório de Conformidade do Projecto de Execução com a Declaração de Impacte Ambiental] aprovou a instalação de 98 unidades complementares de alojamento”, refere uma resposta escrita enviada ao PÚBLICO, que cita o presidente da Câmara Municipal de Odemira, José Alberto Guerreiro.

No pedido de declaração de insolvência da Multiparques, a Ares Lusitani alegava que Francisco Melo Breyner utilizava fundos da empresa para suportar despesas da sua esfera pessoal. A juíza que decretou a insolvência não deu isso como provado. Contudo, o mesmo não aconteceu com o rendimento mensal do conde, que apesar de ocupar um cargo de oficialmente não remunerado, “encontra-se a ser remunerado, no valor mensal bruto de €10.947,00 ( já com IVA) através de uma sociedade detida pelos filhos, a Fredipai”, lê-se na decisão.

O sonho de Francisco Melo Breyner parece querer agora transformar-se num pesadelo. Nada que surpreenda, visto que a Cravex, cujo principal activo era deter 57% da Multiparques, somou um total de 11 milhões de euros em dívidas e a própria empresa que gere o ZMar pelo menos outros 58 milhões. O sétimo conde de Mafra só pode ter estranhado a demora. É que o próprio reconheceu no tribunal de Odemira que não pagava há sete ou oito anos os empréstimos ao Novo Banco.

“[O ZMar] é o fruto de um sonho do Francisco Melo Breyner, em cujo altar sacrificou os seus últimos 15 anos, a sua saúde, e até a casa que herdou dos seus antepassados

Oposição ao pedido de insolvência entregue pelos advogados de Francisco Melo Breyner”

DANIEL ROCHA

JOSÉ FERNANDES

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