20/04/2023 | Imprensa, Notícias do dia
POR NUNO MIGUEL ROPIO
Luís Gomes, vice da bancada do PSD, validou viagens e estadas de artista cubano, com quem cantava, quando era presidente da Câmara de Vila Real de Santo António. Relações com Havana, e não só, varreram quase um milhão de euros das contas do município
Há uma semana, quando o deputado do PSD, Luís Gomes, lançou a sua mais recente canção, Leva-me contigo, as críticas que surgiram prenderam-se, na sua maioria, com a presença da bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, no videoclipe, num momento em que a dirigente está acusada pelo Ministério Público de declarar despesas de viagens que não terá feito. As piadas fáceis pulverizaram-se, a reboque da conjugação da existência desse caso com o título da música. Ora, o social-democrata, que na vida artística usa o z em vez de s no apelido (Gomez) e é amigo da bastonária (ao ponto de a sua filha viver em casa de Ana Rita Cavaco, em Lisboa), também vê vir a público uma auditoria que lhe aponta a validação de um milhão de euros em viagens, pagas pelo município de Vila Real de Santo António, quando era presidente da autarquia [2005-2017], sem que haja documentação que justifique uma boa fatia dessa despesa.
Além de grande parte daquele valor corresponder a viagens de e para Cuba, nesse levantamento dos gastos, levado a cabo pelo atual executivo municipal liderado pelo PS, estão deslocações e estadas do artista cubano Baby Lores, com quem Luís Gomes criou uma ligação musical – quando estaria no início do terceiro mandato e despontava como intérprete de reggaeton – e de quem se manteve próximo durante anos. Com Gomes a formar a dupla musical Baby Lores & Luís, a câmara suportou despesas com o artista, que agora viverá em Miami, segundo a sua página no Instagram.
Em suma; gastos em viagens que se mantiveram mesmo quando a câmara já estava a braços com um grave desequilíbrio financeiro, que fez com que o município seja hoje um dos mais endividados do País, como aponta um relatório da Inspeção-Geral de Finanças. Um cenário que o social-democrata relativiza, alegando que a Justiça arquivou, em 2017, um caso relativo a estas viagens. Sabe a VISÃO que, em causa estiveram queixas de que as viagens teriam servido, a partir de determinada altura, para alavancar a carreira artística do deputado. Gomes justifica os montantes não só com o programa de saúde local, que levava até Cuba vila-realenses para serem operados aos olhos – que mereceu um cartão vermelho do Tribunal de Contas (TdC) -, mas também com protocolos culturais e desportivos entre Vila Real de Santo António e as terras de Fidel Castro, que garante virem do seu antecessor António Murta (PS). Além disso, Luís Gomes alega que o técnico a quem o município pediu a auditoria não está habilitado para a realização de tal trabalho.
AUDITORIA QUENTE?
De acordo com a auditoria, à qual a VISÃO acedeu e que dá, em parte, resposta a uma recomendação recente do TdC, foram já identificadas faturas de viagens e estadas que atingem cerca de um milhão de euros. Com ainda parte do ano de 2017 por desbravar e o de 2012 incompleto, como explicou fonte oficial do município, é possível atribuir uma grande fatia daquele montante ao plano delineado por Gomes, para levar quem estava em lista de espera para uma cirurgia oftalmológica.
“Grande parte dos valores das viagens que questiona diz respeito a algo que fiz e que me orgulho, e voltaria a fazer. Resolvi um problema de saúde que o Estado não conseguia resolver: levámos mais de 500 pessoas para realizarem tratamentos médicos. Estavam a perder a vista e em Portugal não havia resposta”, defende o deputado. “Na maioria das viagens que fiz, nunca recebi ajudas de custo nem subsídios de deslocação”, acrescenta, confrontado com dezenas de deslocações em seu nome, correspondentes a valores que vão dos 300 aos 25 mil euros, em que viajou sozinho ou acompanhado.
Após um primeiro contacto da VISÃO, de que se queixou no programa matinal da TVI, na última terça-feira, Gomes explicou o porquê de algumas das suas deslocações mais caras, como a Toronto [ “viagem de trabalho para efetuar uma reunião com a Air Transat, que tinha acabado de inaugurar os voos Toronto-Faro”] ou a Luanda [“um convite da Fundação José Eduardo dos Santos, para um conjunto de conferências”]; sendo que três representantes de um clube local também rumaram ao Canadá, sem estar fundamentada a deslocação.
Outra tanta despesa resulta da geminação da cidade algarvia com o município cubano Ciudad de La Playa, que alegadamente daria apoio – não está claro qual – aos doentes oftalmológicos. Até porque, a determinada altura, como atesta documentação oficial e notícias de então, era a câmara de Gomes que mandava apoios financeiros para o outro lado do Atlântico, destinados a projetos sociais em relação aos quais não se percebe se viram a luz do dia.
TDC SUGERE PENTE-FINO
A auditoria em questão a acaba por responder ao recente relatório do Tribunal de Contas (TdC), 9/2022, sobre a gestão de Gomes, de 2012 e 2013, quando as finanças do município já estavam no vermelho. Ali, refere-se que “eventuais irregularidades administrativas e financeiras, que se prendem designadamente com: pagamentos de consultas particulares; transporte de avião, deslocações ao aeroporto, alojamento e refeições a particular”, merecem ser passadas a pente-fino numa verificação das contas do município, tendo em conta que nessas despesas, assumidas em parte pela câmara, “está também envolvida a empresa municipal VRSA – Sociedade de Gestão Urbana”.
Gomes pediu, na conversa com a VISÃO, que fosse exposta uma imagem do arquivamento, em 2019, por parte do Ministério Público, junto do TdC, de um processo relativo à sua gestão, em 2015. Porém, consultados os meandros daquele caso, originado por um relatório da IGF à execução do resgate financeiro da cidade, percebe-se como o município atingiu uma dívida de 180 milhões de euros.
A gestão camarária disse que não enviou ainda a auditoria à Procuradoria-Geral da República, para não haver a duplicação de documentação, já que obteve indicação do Fundo de Apoio Municipal (organismo responsável por acompanhar os programas de ajustamento nos municípios) e de outras entidades de que “um vasto conjunto de documentação relativa a contratos e despesas, que podem ser ilegais”, terão ido parar ao Ministério Público.
BABY E OUTROS CUBANOS
Regressemos a Cuba. Contas várias, de milhares de euros, resultam de viagens realizadas por cidadãos daquele país, sem qualquer justificação e que não integravam as comitivas de médicos que vieram de Havana posteriormente ao chumbo do programa criado por Gomes – o Tribunal de Contas chegou a considerar ilegais as viagens, feitas entre 2007 e 2009, na ordem dos 640 mil euros.
As maiores faturas são de três desses cubanos não cirurgiões: Baby Lores (cujo nome é Yoandys Lores González), Roberto Perez (que Gomes descreve como “chefe de gabinete do município de La Playa e que, posteriormente, pertenceu à Fundação José Martí, entidades que tinham acordos com o município”) e Erasmo Lazcano (“representante da Fundação José Martí, que tinha protocolo cultural com o município e era responsável pelo desenvolvimento de iniciativas de solidariedade social e pelas semanas culturais”).
Em relação ao primeiro, atualmente com 39 anos, o deputado assegura: “Este e outros artistas começaram a vir em 2008, altura em que [Baby] não colaborava comigo. Os mesmos viajaram no âmbito das jornadas culturais cubanas que tínhamos e não cobravam cachet. Só gravei com Baby Lores um CD em Agosto de 2017, financiado pela editora discográfica.” Mas o social-democrata contou, ao longo dos anos, versões distintas à imprensa sobre o início dessa ligação, que começou a dar frutos em 2014, como é possível verificar nas redes sociais: uma primeira, de que Baby teria sido apresentado por um médico oftalmologista como um jovem com aptidão musical, em Havana, e feito uns acordes na sua guitarra a pedido de Gomes, num hotel onde este último estaria hospedado; uma segunda, de que teria ouvido, pela primeira vez, o cantor num concerto cá e daí encetado a relação.
A verdade é que, ao longo de anos, o artista cubano deslocou-se e permaneceu no Algarve a expensas do município, para atuar com Gomes, como aconteceu nas festas de Monte Gordo, a 9 de setembro de 2017, ou até nas televisões. Em relação a alguns espetáculos, frisa o deputado, não havia cachet. No seu site, Baby omite o trajeto com Gomes e todas as músicas que gravou com o político. Indo mais a fundo, conta-se na EcuRed, a versão cubana da Wikipédia, que, por volta de 2008, com 25 anos, era bem conhecido como cantor e compositor de reggaeton, tendo já vindo, nesse ano, a este lado do Atlântico.
Se no caso de Roberto Perez há registos de viagens de ida e volta, já quanto a Erasmo Lazcano a câmara assumiu longas estadas, assim como da sua mulher, ao ponto de se tornar colaborador da imprensa algarvia. Este dirigente cubano, que, em tempos, esteve nas fileiras dos serviços secretos cubanos, terá caído em desgraçada em Havana. Veio a ser encontrado morto, junto com a mulher, em Ayamonte, no verão de 2019.
Por último, a concorrer no número de viagens com Luís Gomes surge David Silva, que era seu chefe de gabinete. Sobre aquele técnico, a VISÃO conseguiu identificá-lo agora, numa atuação televisiva do deputado, como tocador de maracas. nropio@visao.pt
Aconselhada por juízes a tirar a limpo despesas com deslocações e estadas na gestão de deputado do PSD, câmara algarvia destapou gastos não fundamentados
Dupla Durante um par de anos, Baby Lores e Gomes cantaram juntos, mas cantor cubano omite, agora, esse percurso com político