A justiça entre o mesmo caminho e atalhos caninos
André Lamas Leite
Compulsados os programas eleitorais de PS e PSD para a justiça, arredando generalidades, idosos diagnósticos e angelicais ornamentos, fica:
1. Bloco central. Há pontos de convergência que nos deviam fazer sair à rua, se não cumpridos. As custas judiciais baixam, o apoio judiciário abrange mais gente, digitalização e tecnologia em barda, à boleia da “bazuca”, mais julgados de paz, mais equipas de recuperação da catatónica jurisdição administrativa e fiscal, e perícias médico-legais mais rápidas.
2. A paixão digital. A “evolução do Citius” (PS) é alargá-lo a todas as fases do processo penal? Se sim, só peca por tardio, pois somos os únicos que, no limite, ainda usamos telecópia (jovens: ide pesquisar à net). À boleia do lema criado por Didon, propõem os socialistas mecanismos de celeridade que não resultem da lei, mas que estejam “consagrados na prática judiciária”. Medo! Então isto deixou de ser um Estado de direito? E que mecanismos são esses? Citius não pode ultrapassar fortius em tão delicadas matérias.
Idem da batuta rosa: aumentar os montantes baixos que os tribunais fixam por danos não patrimoniais. Mas como? Acaso se introduzirá o sentencing (o que, temperado, não faria mal), um software em que se introduza a informação do morto e se chegue a um valor mais elevado, ou acaba-se com a equidade na fixação destes montantes e preferimos tabelas com subidas anuais de 0,08?
3. Propostas “fofinhas”. Do PS: de dois em dois anos, celebra-se um pacto com os cidadãos para garantir tempos máximos de espera, por tribunais e espécies de processos. Vale tanto quanto uma pulseira laranja num hospital do SNS. Em cada triénio, coligir e divulgar o número e a descrição das condenações por corrupção é ignorar que já existem estatísticas da Justiça. Requalificação e modernização prisional, com aposta séria na ressocialização dos condenados, acompanhada pelo PSD, que propõe até uma Lei de Programação do Sistema Prisional. É o “efeito Gouveia e Melo” e a confusão com a Lei de Programação Militar. Do PSD: comissões independentes junto de entidades públicas para resolverem litígios inferiores a 2500, p. ex., entre seguradoras, a propósito da responsabilidade extraobrigacional do Estado. Por este valor esta malta entende-se sem ter de criar tal “ave rara” jurídica. Criação do “provedor do utente judiciário” (haverá nome mais piroso?), nomeado pelo Presidente da República, que não pode ser magistrado, e que funciona como caixa de correio de queixas de magistrados e funcionários, encaminhando-as para os conselhos superiores ou para o juiz- -presidente da comarca. Esta entra para os primeiros lugares do anedotário judicial e vai competir com Isabel II em matéria ornamental.
Regressa o PS com um loop pré-psicotrópico: aumentar a responsabilidade das entidades reguladoras e das ordens profissionais por aquilo que são as suas atribuições. Mas isto não é o que elas já devem fazer? E não se use a clássica culpa da lei, pois, se há ineficiências, elas são dos dirigentes. Aqui, das duas, uma: ou se acaba com a comissão independente para escolher os altos dirigentes dos supervisores e é a tutela quem nomeia, ou se abre concurso público sempre sujeito à geometria variável da composição do júri. No caso das ordens profissionais, que pretende o PS? Nomear bastonários/as? Seria a morte da alma destes organismos, recentemente tentado. Algo de similar se diga quanto à maior transparência das contas dos partidos: não há abundante legislação e uma entidade só para isto? Se ela não funciona, é outro problema. Tendemos a confundir a medida em si com a respectiva execução e a crer que umas letras impressas em Diário da República vão, qual poção de Obélix, levar tudo à frente.
4. (Entre)mostrar os dentes. O PSD quer acabar com o amiguismo nos conselhos superiores, pôr os procuradores na ordem e o Presidente da República a nomear vogais que não têm de ser juristas. Ignorância quanto ao que já sucede com os juízes e quanto ao desígnio existencial do Ministério Público (MP), incompatível com a mera suspeita de poderem ser pressionados para investigar ou esquecer. Reforma da avaliação e promoção dos magistrados: como? Os modelos são muitos (já aqui o escrevi) e o puro e simples “economês” dos processos despachados é como comprar na feira e queixar-se de contrafacção. Os prazos para os magistrados são mesmo para cumprir — peremptórios, em “juridiquês”. O princípio é bom, mas nos megaprocessos — que sempre haverá — deixa-se de investigar tudo para cumprir o prazo ou altera-se o código de modo a prever anos para encerrar um inquérito, acabar uma instrução ou um julgamento? Separar as instalações das duas magistraturas só peca por tardio. E agora do PS: “modelos alternativos à prisão” é, em Portugal, sinónimo de tirar gente das cadeias para poupar dinheiro.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
Escreve à terça-feira
Da paixão digital a propostas ‘fofinhas’, eis o essencial das propostas de PS e PSD para a área da Justiça



