Abuso de desconfiança fiscal

João Silvestre

Utilidade Marginal

A fiscalidade tem tanto de fascinante, para quem por ela se interessa, como de obscuro. Tão obscuro quanto os buracos mais negros de Stephen Hawking. Há matéria. Muita. E há bastante antimatéria também. O caso das barragens da EDP é um desses exemplos. Por acaso teve a infelicidade de ler, caro leitor, o comunicado que o Ministério das Finanças fez chegar às redações na madrugada de domingo? A julgar pelo horário inusitado, pelas 5h57 da manhã, poder-se-ia pensar que o Fisco está a seguir o fuso horário de Pequim, onde são hoje decididos os destinos da elétrica portuguesa. Afinal, por essa altura almoçava-se na capital chinesa. Mas não. O comunicado usava linguagem cifrada para dizer duas coisas: que a alteração ao Estatuto dos Benefícios Fiscais no Orçamento do Estado para 2020, que terá suportado a isenção de imposto do selo neste negócio, não foi feita à medida da EDP e que nem se aplica sequer a uma operação daquele tipo. O problema, além do jargão abusivamente técnico, é que o ministério de João Leão parecia mais preocupado em responder à manchete do “Correio da Manhã” desse dia — a dar conta de uma investigação do Ministério Público ao negócio — e não tanto em esclarecer os factos.

Entretanto, João Leão esteve no Parlamento, onde, numa audição conjunta com o ministro do Ambiente, acabou por dizer que a Autoridade Tributária (AT) já está “a recolher elementos para ver se há planeamento fiscal abusivo” e garantiu que, sendo caso disso, o imposto será cobrado e até pode haver juros compensatórios. A julgar pela linguagem, e juntando aquilo que António Costa já tinha dito na semana passada, quando falou num negócio “criativo”, parece legítimo considerar que da parte do Governo se crê que há mesmo imposto a pagar. Mesmo que, como deve acontecer, a responsabilidade do seu apuramento seja da AT.

Só que esta posição do Governo, que se resguarda no sigilo fiscal e na independência da AT, não acrescenta muito ao esclarecimento de várias questões que continuam em aberto. A primeira tem a ver com a atuação do Fisco: se é assim tão claro que a alteração legal não foi feita para a operação da EDP e que, aparentemente, a aplicação nem sequer se lhe aplica, porque só agora vai avaliar o negócio? Fica também por explicar a necessidade de mudar a lei, como alguns defendem, para evitar casos semelhantes, quando esta não pode ser invocada? Por último, que impostos estão realmente em falta e quem os deverá pagar? No caso do selo, já disseram alguns fiscalistas que o encargo poderá recair sobre o comprador — a Engie — e não sobre a EDP, que foi a parte vendedora.

Todas estas dúvidas não nos devem fazer perder de vista aquilo que sabemos. Foram vendidas as concessões de seis barragens, num negócio de €2,2 mil milhões, sem que o Governo tenha dado suficiente atenção à operação. Seja na vertente fiscal, a mais debatida por estes dias, seja na vertente energética. E para isso as empresas recorreram a empresas instrumentais, criadas para o efeito, havendo ainda dúvidas sobre o racional da sua utilização. Aguardam-se as cenas dos próximos capítulos. Espera-se que com um guião mais inteligível para o comum dos mortais.

As meias-palavras não esclarecem, o povo indigna-se, os deputados trocam acusações e a procissão vai andando. Este artigo do Estatuto dos Benefícios Fiscais, cuja alteração, agora polémica, foi já uma tentativa de clarificação, é mais um exemplo da nebulosa fiscal (e não só) que se vive em Portugal e que, no final, só serve para quem se quer aproveitar das brechas na lei. Quem tem mais meios e os melhores advogados. Claro que há sempre margem para interpretação, mas isto vai muito além disso. Passaram muitos dias desde que o tema entrou na agenda política e os fiscalistas continuam a falar. Talvez se entendam, nós não.

O Governo parece convencido de que há impostos a pagar no negócio das barragens. Mas não o diz de forma clara

Com a verdade nos enganam — há anos

Pedro Santos Guerreiro

O mesmo Governo PS que se está nas tintas para moratórias de 3,7 mil milhões de euros que acabam esta semana está empenhadíssimo em sair de fininho da borla fiscal nas barragens da EDP, em apedrejar um acionista da Groundforce q…