Estatuto do denunciante só vai proteger quem estiver dentro de uma organização

Miguel Dantas

Sociedade Redacção da nova lei terá de ser aprovada no Parlamento

Diploma que vai fazer a transposição da directiva europeia para a lei portuguesa não abrangerá o caso de Rui Pinto. Presidente da Transparência e Integridade pede debate “sem preconceitos”

O conjunto de crimes será alargado, mas a protecção fica reservada apenas para quem fizer parte de organizações: será este o modelo final do Governo para o estatuto de denunciante, que resulta da transposição da directiva europeia de protecção a whistleblowers, aprovada no Parlamento Europeu em Abril de 2019.

Em Janeiro, a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, disse que queria ter este estatuto pronto até ao final do ano. O Ministério da Justiça confirmou ao PÚBLICO que os trabalhos de transposição da directiva estão “bastante adiantados”, algo que permite traçar como meta a inclusão do estatuto de protecção a denunciantes “no conjunto de diplomas de concretização da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024”.

“O estatuto de denunciante está em transposição para a ordem jurídica interna. Tem restrições do ponto de vista da aplicação subjectiva, aplicase a pessoas que trabalham em organizações e tem essencialmente que ver com a prática de crimes relacionados com interesses financeiros da União. O que faremos é alargar o âmbito de aplicação no que diz respeito à panóplia de crimes aplicáveis e, obviamente, criar os canais de denúncia e todos os outros instrumentos requeridos pela directiva”,

afirmou a ministra, questionada a 9 de Novembro pelo deputado centrista Telmo Correia.

A directiva prevê a criação de canais de denúncia internos em empresas com mais de 50 funcionários, de modo a minimizar o número de casos que passam sem investigação. Episódios de represálias no local de trabalho são uma das principais preocupações, com a existência de mecanismos para punir os prevaricadores. Nos casos em que estas denúncias não recebam a devida atenção, o diploma protege quem decidir partilhar as informações junto de órgãos de comunicação social. Familiares, facilitadores e outras pessoas ligadas aos denunciantes também serão alvo de protecção, dita a directiva.

CDS e BE de acordo

Telmo Correia não apresenta oposição quanto ao alargamento dos delitos aplicáveis, defendendo que nas áreas da “contratação, saúde pública, segurança e sistemas de redes e informações” esta directiva também deveria ser usada. Quanto a quem deve ser abrangido, o deputado do CDS limita o acesso, tal como consta no diploma europeu, aos funcionários integrados em organizações. “Um whistleblower é alguém que está na organização, não é alguém que se introduz numa organização – eventualmente até cometendo crimes. Não quero dizer que não possa existir aí algum tipo de protecção jurídica. Até temos o regime de colaborador, um outro enquadramento jurídico. Mas esse não é um denunciante, e sim alguém que no âmbito da sua actividade profissional tem conhecimento da prática de crimes e precise de ser protegido.”

José Manuel Pureza, do Bloco de Esquerda (BE), esclarece que esta directiva não obriga alguém a denunciar os crimes com que se depare, alertando para a necessidade de cautela na aplicação. “A margem de manobra dos Estados-membros é relativamente ampla. Em termos gerais, a directiva é precisa naquilo que protege. É clara quando afirma que alguém tem o direito de não ficar calado quando conhece a violação de uma regra jurídica e, que por causa dessa denúncia, não pode ser perseguido. O que não faz é obrigar à denúncia. Por outro lado, também é muito claro que não legitima a prática de crimes instrumentais para a denúncia. À volta da protecção dos

whistleblowers faz-se um discurso de romantização ou ‘angelização’ da denúncia que precisa de ser prudentemente avaliado”, alerta.

“Proposta é insu?ciente” João Paulo Batalha deixou no final de Setembro o cargo de presidente da Transparência e Integridade – Associação Cívica (TIAC), tendo acompanhado de perto as discussões sobre este estatuto. Considera que a definição de whistleblower peca por defeito, afastando-se da obrigatoriedade do vínculo laboral. “Estou a pensar em situações em pequenas autarquias, por exemplo, em que os rumores saltam para fora de uma câmara municipal. Cidadãos que não têm uma relação laboral com a autarquia e têm acesso a suspeitas não estão protegidos de retaliações. O cidadão sente-se impedido de denunciar. Em Portugal temos vários casos deste género. Se se confirmar, esta proposta do Governo é insuficiente.”

A actual presidente da TIAC, Susana Coroado, considera que ainda não existiu o debate necessário. Este tipo de discussão foi proposta aos partidos após as revelações do Luanda Leaks no início do ano. “Acho que é precisamente esse tipo de questões que devem ser debatidas no Parlamento. Não temos de fazer uma transposição

ipsis verbis da directiva. Os Estados têm margem para serem criativos e irem além das directivas. A protecção de denunciantes é fundamental, mas é complicada, vemos isso pela questão Rui Pinto. E é por causa disso que precisamos de um debate sério e informado, sem preconceitos.”

PE queria “ir mais longe”

A ex-eurodeputada Ana Gomes foi uma das apoiantes no Parlamento Europeu desta directiva. Foi nesta versão que ficou definida a limitação a denunciantes no seio de organizações, que agora causa debate, alimentado principalmente pelo caso de Rui Pinto. A actual candidata à Presidência da República relembra a dificuldade em aprovar este diploma.

“O Parlamento tinha uma posição que era ir mais longe, ou seja, cobrir quem está fora das organizações, mas o Conselho bloqueou. Nós, entre ter alguma coisa e não ter nada, preferimos ter alguma coisa. Por outro lado, a razão que levou o Parlamento a acordar no texto foi por considerar que em parte os denunciantes de fora das organizações já estão cobertos pela quarta e quinta directivas do branqueamento de capitais”, explica. É esta directiva que, na sua opinião, serviria para assegurar a protecção de pessoas como Rui Pinto.

E aponta uma falha na lei: “Esta directiva foi mal transposta, a quarta. Enquanto a versão em inglês diz que os Estados têm a obrigação de proteger todas as pessoas de dentro ou fora das organizações, Portugal arranjou uma redacção esdrúxula que limita o âmbito às pessoas dentro das organizações.”

Ana Gomes diz que o Parlamento Europeu teve de se contentar com versão menos abrangente da lei

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