18/11/2022 | Imprensa, Notícias do dia
Crime Violência usada por estes operacionais preocupa autoridades. Português sequestrado por grupo que procurava 240 quilos de cocaína
A mulher contactou em pânico a Polícia Judiciária: uns bandidos estrangeiros tinham raptado o marido e já estavam a ameaçar a vida das filhas. O perigo era real. Sendo casada com um suspeito de tráfico de droga, só procuraria a polícia num caso limite, de emergência. O que a mulher não sabia é que o marido, Francisco, já era vigiado pelas autoridades, que assim se convenceram do seguinte: o homem que espiavam há dias fora raptado por mafiosos sérvios por causa do desaparecimento de 240 quilos de cocaína expedidos do Brasil com destino à Europa.
Esta história invulgar começa a 11 de outubro de 2022 com uma carrinha carregada com cocaína acabada de chegar de Minas Gerais. Marcos, um brasileiro que vive em Portugal, conduziu-a desde Alverca até ao Montijo e deixou-a no parque de estacionamento de uma grande superfície comercial. Aí, apanhou boleia de Francisco, já referenciado por tráfico. Os dois abandonaram o local e a carrinha, que seria apreendida pela polícia, quatro horas depois. A carga proibida tinha sido detetada à chegada a Portugal pela Autoridade Tributária e passado a estar sob vigilância da PJ. Quando os suspeitos de tráfico voltaram ao local, a carrinha desaparecera. E como a polícia optou por não divulgar a apreensão, Marcos e Francisco ficaram sem saber o que acontecera.
A droga, que a preços de rua valia cerca de 40 mil por quilo (os 240 kg podiam ser vendidos por mais de 9 milhões), fora importada por um grupo de traficantes que incluía brasileiros, sérvios e um português. Quando a carga desapareceu, brasileiros e sérvios desconfiaram que Francisco, o português da quadrilha, estaria a dar uma “banhada” — roubo de droga, na gíria do submundo do tráfico. Segundo o Ministério Público, os sérvios estavam convencidos de que Francisco e Marcos “tinham desviado a cocaína e ficado com o produto”.
Por isso, poucos dias depois da apreensão, os sérvios enviaram para Portugal um comando de três compatriotas seus ligados a uma máfia desse país e também o brasileiro Flávio, que chegou do outro lado do Atlântico. Wanderson, que conhecia Francisco há um ano e residia em Portugal, juntou-se-lhes. Este quinteto tinha uma missão: recuperar a droga ou obrigar o português, que ficara encarregado de retirar a droga do local de chegada e fazê-la chegar ao destinatário final, a pagar o valor.
Francisco foi espancado e ameaçado pelo grupo, que a PJ considera “bastante perigoso” e que vê com “preocupação” esta parceria entre elementos sérvios e brasileiros para traficar droga que passa por Portugal. Também Marcos, o cúmplice brasileiro, foi alvo de violência e ameaçado por estar associado ao transporte da droga desaparecida, mas esteve sempre em liberdade, porque os sérvios deram-lhe um prazo de cinco dias para resgatar a cocaína. Uma missão que não conseguiu cumprir. Por alguma razão ainda não totalmente compreendida, o português conseguiu ficar com o seu telemóvel e avisou a mulher que ela e as filhas corriam perigo de vida.
Quando, a 16 de outubro, a PJ conseguiu prender o grupo de sérvios e brasileiros na zona do Parque das Nações, em Lisboa, estavam todos equipados com mochilas para partir para Espanha, onde teriam um encontro com o líder da rede. Partiriam sem droga, sem dinheiro e sem resposta para a pergunta de 9,6 milhões de euros: onde estavam os 240 quilos de cocaína?
Violência dos sérvios
Francisco, o empresário português responsável por receber o carregamento de 240 quilos de cocaína e que acabou por ser espancado pelos sérvios, é um traficante já com cadastro por importação de droga da América Latina para a Europa por via marítima. Acabou por também ser detido, há uma semana, a 11 de novembro, juntamente com o cúmplice brasileiro, Marcos.
De acordo com informações recolhidas, Francisco estava em ascensão, mas ainda não ocupava um lugar de destaque no submundo do tráfico de droga: não tinha a importância de Ruben “Xuxas” Oliveira, detido no verão, ou de Afonso “Xulinhas”, apanhado há três semanas.
O português agia como freelancer num papel de facilitador às estruturas transnacionais do crime, dando-lhes o apoio logístico na fronteira para operarem mais facilmente no nosso país. “Se não fosse a intervenção atempada da PJ, possivelmente já não estaria vivo”, conclui outra fonte próxima da investigação. Um dado corroborado pela promoção do MP que revela que antes de a PJ entrar em ação, na zona do Parque das Nações, Francisco “receou pela sua vida”, porque ia fazer uma viagem de 700 quilómetros para um encontro com um “superior hierárquico” dos três sérvios.
A entrada em cena da máfia balcânica em Portugal não é nova, mas preocupa especialmente as autoridades numa altura em que os ajustes de contas entre os principais grupos de traficantes da capital começam a ganhar contornos de maior violência (ver caixa). “Os operacionais dos Balcãs são especialmente temidos pela sua agressividade. Muitos deles são ex-militares da guerra da Bósnia que usam os seus conhecimentos bélicos para aplicá-los no mundo do crime”, conta uma fonte judicial. “O grau de violência destes grupos não tem nada a ver com o dos grupos portugueses”, garante outra fonte.
Esta aliança entre criminosos sérvios com os brasileiros do Primeiro Comando da Capital (PCC) — que na América Latina são acusados de assassinarem juízes, procuradores e advogados — faz aumentar a possibilidade de ocorrência de banhos de sangue entre grupos rivais e também de tiroteios públicos, não só na América latina como na Europa.
Um documento da Justiça brasileira revela que esta não é a primeira vez que Wanderson, um dos cinco detidos no Parque das Nações, colabora com operações de sérvios na colocação desta droga na Península Ibérica. Há cinco anos, participou numa megaoperação de tráfico entre o porto de Santos, em São Paulo, e o de Valência, em Espanha. A droga era adquirida pelo PCC na Bolívia e na Colômbia, para ser distribuídas na Europa, não só nos portos espanhóis, mas também italianos, belgas e ingleses. O grupo, com mais de 150 elementos, foi apanhado pela Polícia Federal na Operação Brabo, mas Wanderson acabou absolvido.
hfranco@expresso.impresa.pt
AJUSTES DE CONTAS ENTRE TRAFICANTES
ATAQUE NUM STAND A 10 de março, em Odivelas, dois homens de nacionalidade síria e passaporte dinamarquês pararam uma scooter diante de um stand de motos; um deles entrou no estabelecimento e disparou uma Glock 19 contra um traficante, de 25 anos, filho do dono do stand, atingido no braço e nas costas. O pai da vítima alvejou os dois atacantes depois de uma perseguição. Um deles ficou ferido com gravidade.
MULHER DE TRAFICANTE BALEADA
A 17 de março, a mulher de Samir, um dos principais traficantes de cocaína da capital, foi alvejada quando se encontrava no interior de um Mercedes, em Odivelas, com tiros disparados de outro carro em movimento. “Os tiros foram para a matar”, conta uma fonte policial. Escapou por pouco, mas ficou ferida com estilhaços de vidro do próprio carro.
TRAFICANTE ATINGIDO E DESAPARECIDO
A 31 de março, Samir foi mesmo o alvo. Estava em Marvila, em Lisboa, quando foi alvejado por desconhecidos. Uma semana depois foi a vez de o seu cunhado ser baleado no Bairro do Condado, na zona oriental da capital. Embora tenham ficado com ferimentos, nenhum deles morreu. Samir decidiu então desaparecer de circulação e ninguém sabe onde se encontra.
NÚMEROS
43%
foi quanto aumentou a produção de folha de coca na Colômbia em 2021. De 143 mil para 204 mil hectares cultivados
15,7
toneladas de cocaína apreendidas em 2022 pela PJ, um recorde dos últimos anos