21/12/2022 | Imprensa, Notícias do dia
Luís Menezes Leitão
BASTONÁRIO DA ORDEM DOS ADVOGADOS
LEI E ORDEM
Causou desconforto no próprio PS a entrevista dada pelo Primeiro-Ministro à Visão, em que o mesmo demonstrou uma enorme arrogância em relação à oposição, chegando até a um tratamento desrespeitoso para com os seus deputados. E bem a propósito referiu; “Vão ser quatro anos. Habituem-se”. Estranha-se, no entanto, que esse desconforto de alguns só agora tenha surgido, quando o país já se foi habituando a uma clara deriva autoritária, sem que ninguém se pronunciasse, mesmo depois de Portugal passar a ser qualificado internacionalmente como uma democracia com falhas.
Na verdade assistimos a sucessivas medidas inconstitucionais tomadas pelo Governo contra os direitos fundamentais e à abolição dos debates quinzenais com o Primeiro-Ministro, sem que nenhum órgão do Estado tivesse reagido. Pelo contrário, quando a inconstitucionalidade dessas medidas foi declarada pelos tribunais, surgiram propostas de revisão constitucional para restringir o direito à liberdade. E esta semana vai ser aprovada uma lei para colocar as ordens profissionais sob controlo político, atentando assim contra a sua independência, o que nem no Estado Novo tinha acontecido.
Habituem-se? Já estamos habituados a isto há muito tempo.
JÁ ESTAMOS HABITUADOS ‘A ISTO HÁ MUITO TEMPO
21/12/2022 | Imprensa, Notícias do dia
Repórter
Saída de Fernando Santos do comando técnico da Selecção não apaga rasto de dúvidas e esquemas que marcaram a ligação do ‘mister’ à Federação Portuguesa de Futebol. Fisco anda atrás dos adjuntos. Federação continua sem regras internas contra a corrupção. Os actuais dirigentes só por milagre vão chegar a 2024 com apoio da opinião pública
Os problemas não começaram a 10 de Dezembro, quando a Selecção Portuguesa, liderada por Fernando Santos. perdeu por 1-0 frente a Marrocos e disse adeus ao Mundial de Futebol 2022. A derrota no Qatar mais as polémicas sobre se Cristiano Ronaldo foi bem ou mal utilizado tiveram apenas o condão de marcar um antes e um depois na vida interna e na imagem pública da Federação Portuguesa de Futebol. Os problemas já lá estavam — e como se diz nos meios futebolísticos a verdade aparece sempre quando a bola não entra. Equívocos, factos pouco transparentes, situações aparentemente legítimas, mas que levantam fortes dúvidas éticas — eis a enxurrada na Cidade do Futebol. A que se junta o problema da sucessão.
Da sede da Federação, em Oeiras, nem uma palavra. O nosso jornal tenta há semanas escutar um comentário, um mínimo esclarecimento. Os responsáveis pelo órgão máximo do futebol português adoptam a ‘lei da rolha’ e ignoram as perguntas do Tal&Qual. Há quem diga que a Federação tem métodos de comunicação surreais e quase medievais, como classificou há dias o jornalista da SIC, Luís Marçal. Fernando Gomes, presidente da Federação desde 2011, parece querer blindar a instituição a qualquer polémica. Durante anos talvez tenha sido essa a receita do seu êxito e da unanimidade que colheu. Acontece que ao mesmo tempo Gomes está a blindar a Federação ao escrutínio público, o que faz aumentar a desconfiança e contribui para um terrível desgaste de imagem e reputação.
É voz corrente que Fernando Gomes gostaria de se manter à frente da Federação depois de 2024, que é quando termina o seu último e terceiro mandato. Mas a lei geral impede-o. “Nenhum titular pode exercer mais de três mandatos seguidos no mesmo órgão da FPF’, dizem os estatutos da instituição, decalcados do regime jurídico das federações desportivas. Há meses que várias federações fazem constar que não estão em negociações com o Governo para conseguirem o prolongamento dos actuais três mandatos. Mas os homens do futebol veriam com bons olhos que a excepção surgisse mesmo.
De tal maneira que Tiago Craveiro — director-geral da Federação durante uma década, até Março último, e actual administrador da UEFA — foi um trunfo nesta estratégia. Considerado uma mente brilhante, Craveiro tinha e tem boas relações com o primeiro-ministro, António Costa. Ou seja, tem capacidade para interceder a favor dos interesses de Fernando Gomes. No entanto, a amarga campanha da Selecção no Qatar e as sombras de pecado que hoje se projectam sobre a Cidade do Futebol estão a comprometer os sonhos de grandeza do ainda líder da instituição.
Nos corredores ouve-se dizer que, sabendo isso, Fernando Gomes equaciona empurrar para a sucessão, em 2024, nada menos que José Couceiro — que hoje está na direcção da Federação como um dos três vice-presidentes (ao lado de Humberto Coelho e Pedro Proença).
Couceiro, sobrinho-neto do astro sportinguista Peyroteo, já foi de tudo no futebol: defesa central, sindicalista, dirigente do Sporting, treinador.
Será ele o próximo presidente? Por certo há apenas uma coisa: o ocaso de Fernando Gomes paira no horizonte e a saída de Fernando Santos, anunciada na semana passada, foi apenas o início do fim.
Fisco continua à procura de irregularidades
No currículo, além da modernização da Federação e de certo apaziguamento da sempre inquieta da vida futebolística nacional, Gomes anterior já inscreveu inúmeros equívocos O caso mais gritante será o da situação fiscal do agora ex-seleccionador Fernando Santos. A Autoridade Tributária considera abusivo o acordo que o ‘mister’ assinou em 2014 com a Federação. Em vez de ter sido contratado como funcionário, entrou como prestador de serviços através da sua própria empresa, a Femacosa. E assim se manteve até hoje. Ora, para o Fisco, a empresa é uma fachada que permitiu ao treinador pagar IRC a uma taxa (pouco mais de 20%) muito inferior à do IRS (48%) que teria de pagar se fosse funcionário da Federação ou caso se atribuísse a si mesmo, como sócio-gerente da Femacosa, um salário superior aos actuais cinco mil euros (montante muito abaixo do que a Federação de facto lhe paga).
Note-se, aliás, que a Federação assume ter sido a responsável pela solução Femacosa. A decisão coube a Fernando Gomes, que alegadamente não levou o assunto às reuniões da direcção da Federação em 2014, apenas mais tarde, quando os papéis já estavam assinados.
Este caso deu origem a um diferendo entre o ‘mister’ e o Estado. Fernando Santos avançou para o Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) com a tese de que a lei lhe oferece escolha entre a tributação via IRC ou IRS e ele optou candidamente pela primeira. Pelos vistos, o CAAD não concorda e em Outubro decidiu contra a vontade de Fernando Santos e do seu advogado, António Lobo Xavier. Entretanto recorreram para o Supremo Tribunal Administrativo e Fiscal e para o Tribunal Central Administrativo Sul. Ambos os recursos aguardam decisão.
Fontes bem colocadas dizem-nos ser quase impossível que o Supremo aceite sequer o recurso, decisão esta que pode ser conhecida nas próximas semanas. Há uma taxa de rejeição de cerca de 95% dos recursos do mesmo género. As mesmas fontes garantem-nos que a Autoridade Tributária continua no encalço de Fernando Santos e anda a ver à lupa todas as declarações de impostos do treinador posteriores a 2017. Isto porque a relação Femacosa e Federação se manteve até hoje, logo, a situação considerada abusiva pelo Fisco não se restringe a 20216-17. Uma vez que numa primeira decisão (a do CAAD, em Outubro), o acórdão deu razão ao Estado, o Fisco sente-se respaldado para avançar com novas cobranças de IRS junto de Fernando Santos, sem ter de esperar pela decisão dos recursos relativos a 2016-17, o que é legalmente viável.
Os outros elementos da equipa técnica da Selecção — Ilídio Vale, Ricardo Santos, Jorge Rosário, João Costa e Fernando Justino —também não têm contratos de trabalho com a Federação.
Constituíram empresas, as quais são prestadoras > de serviços junto da Femacosa. Ou seja, a Federação contratou a empresa de Fernando Santos e esta :* é que contratava as empresas dos adjuntos. O que ) significa que do ponto de vista do Fisco os adjuntos incorreram no mesmo tipo de abuso apontado ao ex-seleccionador. Os adjuntos já foram notificados para pagarem o IRS que a Autoridade Tributária considera em dívida.
Curiosamente, soube-se na última quinta-feira, quando a Federação confirmou a rescisão do contrato com Fernando Santos (em rigor, com a Femacosa), que as partes acordaram que o ‘mister’ vai receber 4,5 milhões de euros como último pagamento. O montante não pode ser um acaso. Foram precisamente 4,5 milhões que a Federação adiantou ao seleccionador no ano passado, quando as Finanças exigiram ao treinador um adicional de IRS de 2016-17. Fernando Santos prometeu pagar de volta à Federação, mas até hoje está no segredo dos deuses se o pagamento foi ou não efectuado pelo agora ex-seleccionador. Se o acordo de saída é de 4,5 milhões, é muito provável que, na prática, Fernando Santos não receba um só euro, pois é este o mesmo valor que ele está a dever à Federação.
Todos estes imbróglios levantam dúvidas sobre que mecanismos tem a instituição para lidar com casos de corrupção e outras infracções. Terá sido este um caso isolado de ética duvidosa durante o consulado de Fernando Gomes? A associação portuguesa Transparência Internacional, que monitoriza casos de corrupção, escreveu a Gomes no início de Outubro a perguntar se a Federação já tinha em vigor normas anti-corrupção, obrigatórias desde o ano passado à luz do Regime Geral de Prevenção da Corrupção. Gomes respondeu a 2 de Novembro, de acordo com documentos que a Transparência Internacional fez chegar ao T&Q. E respondeu de forma muito vaga: a Federação “encontra-se a implementar” normas anti-corrupção. Ou seja, ainda não existem. Definitivamente, há problemas com a transparência na Cidade do Futebol.
Fernando Santos sai da Selecção com presumíveis 4,5 milhões no bolso, mas este é o mesmo valor que o ‘mister’ ficou a dever à Federação no ano passado
Situação fiscal de Fernando Santos, agora ex-seleccionador, é a grande dor de cabeça da Federação